quarta-feira, maio 02, 2007

Piscina de Fígado

Imaginem uma claque de futebol a cantar a brejeirice foleira, passe o pleonasmo, de “Tu Nunca Andarás Sozinho”. E depois a incentivar “Piscina de Fígado! Piscina de Fígado! Piscina de Fígado!”. Parece mal, não parece? Mas se cantar “You’ll Never Walk Alone” e incentivar “Liverpool! Liverpool! Liverpool!” parecerá bem melhor. No limite, até merecerá louvores.
O campeonato inglês é pródigo em nomes que, em tradução muito livre, se assemelham a profundas barbaridades em português. Eis alguns exemplos: Queimadura Negra (onde joga o Benny McCarthy, ironia das ironias), Castelo Novo, Homem Unido (em versão abreviada), Presunto do Oeste, Os Passeadores de Bolton, A Boca do Porto e Lendo. Mas é a Piscina de Fígado que me enche as medidas.
Que belo nome. Nós, por cá, apostamos no pueril sufixo “-ense” para múltiplas equipas. Não tem o mesmo efeito. Piscina de Fígado, isso sim! Que bom seria ter um modesto Barril de Escrotos em Leiria ou um tímido Alguidar de Pâncreas em Aveiro – aposto que os estádios teriam mais gente, nem que fossem adeptos fervorosos de filmes de terror hard-gore. O Piscina de Fígado é o clube de qualquer assassino em massa que se preze. Com camisola vermelha e tudo, lembrando o sangue da vítima que penou em ver o seu fígado retirado a sangue frio, sem anestesia. Sim, porque quem tem a veleidade de conceber uma piscina de fígados tem de ser suficientemente macabro para retirá-los a vítimas ainda vivas, dadoras de órgãos incautas (tipo Monty Python n’ “O Sentido da Vida”), e amontoá-los numa piscina onde todos pudessem contemplar os belos assassinatos perpetrados. Uma personagem tão mórbida que, quando nos abeirássemos dele em pleno Verão, perguntávamos:
- Eh pá, que grande casa que tu aí tens! E está cá um calor… Posso dar um mergulho na tua piscina?
E ele respondia-nos:
- Eh pá, é melhor não… depois de tantos assassinatos, comecei a colocar os fígados na piscina. Água só na torneira… a banheira tem os rins e a garagem as cabeças. Posso cortar a tua mão para fazer um cinzeiro?
- Pois não, corta-me a esquerda, por favor! Preciso da direita para serrar pescoços de crianças desdentadas! – esta última parte já não faz parte da fantasia, mas adiciona um toque ainda mais negro.
Conclusão: os adeptos da Piscina de Fígado são psicopatas ou descendentes deles. E ainda por cima, arriscam-se a ganhar mais uma Liga dos Campeões e a pintar de sangue o tapete verde de Atenas. Os jogadores da Piscina de Fígado são autómatos, vide Robbie Fowler e Peter Crouch. Não têm fígado. Se na Académica da lusitana Coimbra a praxe passa por receberem uns calduços na entrada em campo, enquanto correm em cima de batinas pretas, na Piscina de Fígado a praxe aos jogadores novos passa pela remoção das vísceras. Os adeptos exultam, os jogadores dissecados metamorfoseiam-se em mortos vivos com movimento, devido à ajuda de menos alguns gramas de órgãos que antes dificultavam a locomoção. O próprio norueguês Riise parece exangue por efeito dessa operação.
Os Beatles, ou “Os Ezcaravelhus”, provinham da Piscina de Fígado. Além do mais, o bar onde tocavam inicialmente designava-se “A Caverna” – tudo é sintomático do negrume espiritual associado à cidade. Os Beatles são produtos genuínos dessa terra atroz. Os Beatles merecem todo o desprezo que a Igreja lhes quis dar nos anos 60 só por esta razão ímpia. O John Lennon veio depois com os dias de cama pela paz, mas levou um tiro de um fanático que não lhe perdoou a traição aos princípios. O George Harrison rendeu-se lá aos deuses hindus e a toda uma espiritualidade de reconvertido, mas também já bateu as botas. O Paul McCartney, como castigo, nunca mais teve sucesso a solo. E o Ringo Starr optou pela penumbra e ninguém nos garante que já não pratique a acumulação de fígados na sua piscina.
Mais famoso que os Beatles nem Jesus; mais sádica que a sua terra nem Wayne Gacy. O próprio rio que banha a cidade é o Mersey, que é um quase, quase homónimo de “Misericórdia” em inglês. Razão: primeiro, os desprevenidos iam à “caverna” ouvir “os ezcaravelhus” com “Ama-me, Ama-me Sim”, assim como quem embala bebés. Depois, “os ezcaravelhus” e os vândalos do estádio da equipa de futebol, sediado em Anfield Road (ou “Estrada de Uma Campo”), conduziam as vítimas horrorizadas para as margens do rio e arrancavam-lhes as entranhas, perante pedidos de “misericórdia” (daí o “Mersey”). Os fígados, para a piscina; o resto, para o rio, para alimentar os peixinhos esfomeados.
Demasiada forçada esta relação? Certamente. Porém, já conheceram alguém que tivesse ido à Piscina de Fígado e tenha desejado regressar? Não, pois não? E já alguém lá foi? Não, pois não? Viagens para a Inglaterra só em low-costs para Londres, com voos de regresso a horas indizíveis da madrugada. A Piscina de Fígado não é como Portugal, onde acreditamos piamente que 90% dos turistas, quando não 100%, desejam ardentemente regressar ao nosso prendado país.
Quanto mais não seja, pela diversão. Por exemplo, ver um jogo de futebol entre o Close To The Sea e o Goodstay, que iria despertar risos no súbdito mais etilicamente carregado de Sua Majestade, fossem estes nomes mesmo traduzidos para o inglês. Ou entre um Sporting of the Birds – Goodsight. Um dos grandes tem um nome inglês, mas é um nome muito olímpico: é simplesmente “desportivo”. Um outro tem um nome demasiado simples: “Port”. “Port” de nada, nem sequer é porto de boca, de cotovelo ou de bexiga. O outro grande, sim, esse possui um nome que dá para ser glosado, ou não fosse um bairro de matriz arquitectónica urbano-depressiva-anos 60 da capital (como é, como demonstrei acima).
Mas pronto, risos são risos, são efémeros; nada se compara a um esventramento de um órgão humano, que é uma imagem forte. Espectacular, a visão de uma Piscina de Fígados ao sol, aquele vermelho vivo a escorrer sangue e o derreter daquela pasta gelatinosa consumida pelos inícios de uma cirrose hepática fulminante, sob os gritos lancinantes dos estropiados que gotejam sangue pelos dentes e sob os aplausos ébrios dos apoiantes de cachecol vermelho que nunca deixarão a sua paixão andar sozinha, não vá ela ficar igualmente sem fígado… Força Piscina de Fígado, os carniceiros estão contigo.

2 comentários:

. disse...

Essa espécie de clube histórico já levou com a dose no ano passado e vai levá-la outra vez, iscas a la carte na piscina de Atenas diz Gennaro "Il Ringhio" Gattuso.

Rodrigues disse...

Também espero que sim... embora nunca fiando: só perderam 1 das 7 (?) finais europeias disputadas.