quinta-feira, fevereiro 26, 2009

Momento VH1 Classic

Os anos 80 foram marcados pelos vários assassinatos perpetrados contra as normas do bom gosto. Este assunto já foi devidamente escalpelizado. Actualmente, é do senso comum que, provavelmente, todos os (maus) excessos estilísticos provêm desses terríveis anos. E algumas reminiscências ainda nos atingem nos dias que correm. Talvez o SIDA tenha sido um castigo demasiado pesado. Mas foi o castigo que Deus arranjou, assim dizem os crentes.

Porém, nem tudo foi mau. Foi nos anos 80 que se escancararam as portas para uma nova arte: o videoclip. Videoclips a sério, artisticamente falando, não meras filmagens de bandas a tocar ao vivo ou a fazer playbacks mais ou menos sincronizados.
Os videoclips fascinavam ao início, por vermos os artistas e os seus instrumentos em poses que nunca imaginaríamos. Era o áudio a juntar-se ao visual. Era a novidade. E ainda fascinam, muito embora já não sejam uma novidade e tenham matado a estrela da rádio. Por vezes, os videoclips complementam a canção; outras vezes, direccionam-se num sentido completamente improvável e que empresta à canção um novo fôlego. Hoje, já são indispensáveis ao marketing de uma banda; já não é possível equacionar a imagem de uma banda sem lhe agrafar o respectivo registo visual. Hoje, até já há bandas que parecem viver somente dos seus videoclips e desse repositório infinito que é o You Tube.
Como se viria a provar, certos artistas atingiriam maior notoriedade pela inovação e pelo arrojo visual dos seus videoclips do que propriamente pela qualidade da sua música. Outros, num acto de afirmação artística, declinaram videoclips de grande orçamento ou rejeitaram mesmo rodá-los. E ainda houve outros que, sentindo o cheiro das grandes oportunidades, aliaram uma canção no mínimo razoável a um bom videoclip que catapultou essa canção para a imortalidade. Foram estes os grandes vencedores.

Eis três destes grandes vencedores (por ordem cronológica):

O inevitável preto-branco do Michael Jackson e o seu “Thriller” (1982) tornou-se campeão à pala deste deleite visual. Sem surpresas: quase todos os topes do género chamam este videoclip até si. Videoclip longuíssimo, até para os cânones que se seguiriam, tem a voz emprestada do Vicent Price e imagens que prestam uma bela homenagem aos filmes clássicos de terror – a ironia reside no facto das mutações vindouras que o próprio Jackson sofreria terem sido, eventualmente, mais horrendas que qualquer zombie do videoclip.
A canção até pode ser uma gema pop, mas nunca teria tido o mesmo impacto se não fosse por esta curta-metragem. O ponto alto do videoclip é, sem dúvida, a longa coreografia de zombies. Icónica e inesquecível, a dança dos mortos foi o melhor que Michael deixou neste mundo. O funk dos moribundos e moribundas impecavelmente caracterizados deixa qualquer um de boca aberta, e não apenas pelo aspecto dos cadáveres. Não, senhor: é uma delícia de arte moderna que atravessa gerações, é puro talento em movimento. É Jackson, ainda meio preto, a dar largas às suas ancas e movimentos únicos. Não queremos um bis imediato, pois isso seria pedir demais; queremos respirar fundo e voltar a ver passados cinco minutos.
O vídeo assustava-me pelo seu impecável cenário de filme de terror; agora, assusta-me pela perfeição e originalidade dos movimentos que, creio, não deverão ser igualadas. Pelo menos, ainda não foram e o mundo dos videoclips já não vive tanto das danças. Aqui assiste-se à gloriosa confluência de cinema, música e dança como nunca mais se viu ou se viria.
Lá para o final do videoclip, Jackson revela-nos que, efectivamente, estava possuído, sorrindo como um lobisomem de olhos verdes para a câmara onde se esconde a gargalhada pérfida do Vicent Price. Para azar do Jackson, ele nunca mais traduziria essa possessão em algo artisticamente tão relevante quanto “Thriller”. Nem mesmo com a tentativa de repetição petulante e até ridícula de “Bad”, em 1988 (“Weird” Al Yankovic faria melhor com “Fat”). “Thriller” foi, paradoxalmente, também o início da sua longa e funesta travessia pelas Terras do Nunca.

A grande descoberta musical nórdica a seguir aos enjoativos ABBA: os noruegueses A-Ha, destinados a vegetar pelos fiordes até que, em 1985, uniram-se com este fantástico realizador (Steve Barron) do videoclip de “Take On Me” e passaram para as bocas do mundo.
OK, há bem pior que “Take On Me” no baú das recordações. O falsete do vocalista Morten Harket, dizem, é dificílimo de ser igualado. E os teclados tão “oitenta” da canção nem são, de todo, embaraçosos. A canção é pop no seu estado puro. Não há aqui qualquer maldade, apenas inocência romântica a transpirar em cada nota da música. Poderia ter chegado sem grandes dificuldades aos topes da época, mas foi o vídeo que lhes ganhou espaço no passeio da fama.
A combinação entre desenho animado e filme era inédita (3 anos antes de “Quem Tramou Roger Rabbit?”) e aqui surgiu com resultados impressionantes. O videoclip acentua o romantismo latente da letra e mistura-o com corridas automobilísticas, mecânicos malvados e desenhos e humanos que atravessam dimensões em simultâneo. Excelentes desenhos e excelente filmagem. Um lugar na história, pois então.
Os A-Ha nunca mais atingiriam semelhante altitude mediática. É certo que não foram “one-hit wonders” (“The Sun Always Shines On TV”, “Hunting High And Low”, ambas do mesmo álbum de “Take On Me”). Mas andaram por lá perto, mesmo que tenham sido convidados a fazer a canção-título de “The Living Daylight”, o filme de James Bond de 1987. Hoje deverão estar a viver a sua reforma lá para os lados onde o bacalhau mora.

Só pelo tempo de rodagem e orçamento deste videoclip, “Sledgehammer”, de Peter Gabriel, antes de o ser já o era (um grande videoclip, entenda-se).
Fabuloso em todos os aspectos de montagem, em termos de ideias impecavelmente agregadas e servidas como um todo coerente, e também por nunca parecer muito abstracto nem desfasado do tema da canção. Se estivermos atentos, vemos que o vídeo segue a lógica de insinuações sexuais com que o excêntrico Gabriel polvilhou a canção. O único momento mais “livre”, digamos assim, coincide com a parte instrumental, decorridos aproximadamente 2/3 da canção – a memorável coreografia entre dois frangos depenados e sem cabeça, saídos dum ovo à martelada, para o seu momento de fama antes do tacho. Durante estes momentos há montanhas-russas, espermatozóides de plasticina, muita fruta e um coro gospel. Fantástico.
Um notável esforço de Peter Gabriel, que tomaria o gosto pelos grandes videoclips. “Steam”, de 1993, trilharia o mesmo caminho, mas todos reconhecemos que nada bate o original. “Games Without Frontiers”, de 1980, já mostrara que Gabriel estava fadado para os grandes videoclips. Mas “Sledgehammer” foi o seu auge. Personalidade complexa, apreciador de sensibilidades pouco óbvias, Peter Gabriel reuniu com “Sledgehammer” um consenso nada fácil de prever com a ajuda imprescindível do respectivo videoclip. Nós agradecemos.
Bela música, com muito boa inspiração lírica (é usual em Peter Gabriel) e instrumentalmente rica, beneficiando de uma produção limpa, limpinha, como se queria naqueles tempos, e desta maravilhosa peça audiovisual que monopolizou todos os prémios relativos aos vídeos de 1986. Citando o próprio Gabriel “This is the new stuff/ I’ll come dancing in” – e ele entrou a matar neste admirável mundo novo dos videoclips, com um sucesso retumbante, para mais se pensarmos que isto era 1986 (quando nasceu o Miguel Veloso, para terem uma ideia).

Outras menções:

“Money For Nothing”, dos Dire Straits (1985), é igualmente um belo videoclip, o primeiro rodado maioritariamente em computador. Porém, as arestas rudimentares das personagens tornam o vídeo demasiado datado, muito preso a uma era mais analógica que digital, mais do que qualquer um dos referidos acima. Ainda assim, se devidamente contextualizado, “Money For Nothing” foi um belo pedaço de inovação que certamente honrou a também muito boa canção – ainda que os pozinhos de sintetizadores não disfarcem a substância mais “setentas” que impregna o riff principal.


David Bowie também andou por lá a rondar o altar dos grandes videoclips, mas ficou-se sempre um pouco aquém. Não enveredou tanto pela inovação tecnológica, mas os seus videoclips possuíam imagens fortes (ao lado, Bowie Pierrot a passear numa praia com cores psicadélicas em “Ashes To Ashes”, de 1980, na Idade Média dos videoclips) ou histórias com cariz sociológico (“Let’s Dance”, de 1983, e mesmo “Absolute Beginners”, de 1986). A diferença entre ter ou não ter orçamento ou mera opção? Qualquer que seja a resposta, Bowie perdeu aos pontos.

Os Duran Duran, quase unanimemente apontados como os grandes vencedores da era do videoclip, sempre foram demasiado sobrevalorizados. Musicalmente mais competentes que as boys-bands vindouras, mais sofisticados que as boys-bands que lhes seguiriam, nem por isso deixaram de viver à sombra daquilo que vivem as boys-bands: a imagem. Por imagem leia-se “roupas de cores berrantes e chumaços patéticos”, “penteados indescritíveis”, “rímel nos olhos” e “instrumentos customizados para parecer que somos bons”. Os videoclips notavam-se sobretudo pelo exotismo dos seus cenários (“Hungry Like A Wolf” algures no Oriente, “Rio” – ao lado – algures nas Caraíbas e “A View To Kill” na Torre Eiffel) do que propriamente por algum arremedo de arte. Os Duran Duran podem ter enchido capas da “Bravo”… mas isso não garante a eternidade para quem hoje tenha menos de 35 anos.

… e sim, a VH1 Classic é o meu canal musical preferido. Mesmo com tanta programação a versar sobre os fatídicos anos 80.

1 comentário:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.