sexta-feira, outubro 30, 2009

Faíscas Brilhantes

Julgo que foi Paul McCartney quem disse “Hitler está vivo e a tocar numa banda new-wave. Ron Mael, o “Hitler” em causa, sorri e diz que prefere ser conotado com Charlie Chaplin.
Quem é Ron Mael? Ron é irmão de Russell e ambos formam os Sparks. Ron é igualmente o teclista, compositor e o principal letrista da banda. E sim, fez uso e abuso de um bigode “à Hitler”/”à Charlot”, que combinava com um cabelo e um estilo de vestuário longe dos cânones rock/pop, complementando com olhares bizarros ou mesmo sinistros para as câmaras, em performances preferencialmente estáticas. Já Russell, mais frenético, ou não fosse ele o vocalista, era o “menino bonito”, pese embora algumas variações capilares de gosto dúbio, mesmo para a moda espampanante dos anos setenta e oitenta. Russell foi sempre um verdadeiro “crooner”, voz riquíssima, capaz de metralhar palavras imitando o sotaque britânico (eles são americanos de Los Angeles), dando simultaneamente largas ao falsete; de Ron esperávamos competência nas suas prestações, melodias obviamente pop e mais letras de enorme sensibilidade observadora, pejadas de ironia e, por que não assumi-lo?, algum desencanto masculino que tendia a resvalar para um certo chauvinismo – mas sempre com uma verve bastante apurada.
Os Sparks são a melhor banda que ninguém conhece. São dinossauros eternos, sempre bem-dispostos, sempre prontos para compor sobre temas como uma hipotética traição de Julieta a Romeu e a reacção deste no céu ou de como é “cool” sair Sábado à noite para a discoteca onde lhes foi vedada a entrada na semana passada. Continuam a lançar álbuns na candura dos seus 60 e tal anos, ousando sempre ir um passo mais além. Não estão, nem podem ser, catalogados com um simples rótulo de rock/pop. Eles foram percursores do glam-rock, estiveram na vanguarda da electrónica, misturaram ambos e foram desembocar ao techno, fizeram cócegas ao kitsch, reinventaram Beethoven e Bergman e ainda são capazes de mandar umas guitarradas hard-rock. Influenciaram gente tão díspar como Jimmy Sommerville, Faith No More, Erasure, Queen ou Morrissey (ao qual dedicaram uma canção apropriadamente intitulada “Lighten Up, Morrissey”). Muito poucas bandas se podem orgulhar de manter um registo musicalmente tão rico e de se manterem tão profícuas, conservando um aparentemente indecifrável anonimato.
Quando os Sparks surgiram em 1971 ainda se chamavam Halfnelson e os irmãos Mael eram os dois principais elementos dessa banda. Após dois álbuns em que o seu nome permaneceu praticamente incógnito nas tabelas americanas, emigraram para a Inglaterra, eles que se consideravam a si mesmos “anglófonos”, onde obteriam algum protagonismo – o sentido de humor e toda a estética da banda em geral seria sempre mais apreciada na Europa do que na sua América natal, talvez por serem um pouco excêntricos demais para o gosto predominantemente imediatista dos americanos. Com efeito, em 1974 lançaram “Kimono My House” (uma excelente capa), tido por muitos como o auge da sua carreira que ainda dava os primeiros passos. “This Town Ain’t Big Enough For Both Of Us”, “Amateur Hour”, “Here In Heaven”, “Barbecutie” e “Equator” são de facto grandes faixas que revelaram os Sparks como uma banda inteligente, imaginativa e, claro, capaz de divertir uma audiência com a sua inigualável combinação entre melodia e prosa (e imagem em palco, como eles próprios referiram).
A partir daqui o percurso seria mais exigente. Ron e Russell assumiram-se como os donos dos Sparks e os membros acompanhantes da banda entrariam numa roda-viva – ficou claro que os Sparks eram somente um duo. Apesar de tudo, mantiveram a fórmula e a mesma banda de “Kimono My House” para “Propaganda” e “Indiscreet”. Tentativas quiçá desesperadas para capitalizar a exposição ganha com “Kimono My House”, mas que devem ter provocado o efeito de “entupir” os fãs com três lançamentos muito iguais entre si em apenas um ano. Porém, o reconhecimento atingido com “Kimono My House” não foi repetido e jamais voltaria a sê-lo. Abandonaram esse grupo de músicos (e que grande solo tem a bíblica e orquestral “Bon Voyage” e que grande dinâmica tem “At Home, At Work, At Play”, ambas de “Propaganda”) e regressaram à América, tentando captar a atenção dos seus conterrâneos com o álbum mais “pesado” da banda, “Big Beat”. As letras tornaram-se mais directas e as hormonas vieram ao de cima com faixas como “I Like Girls” e “Throw Her Away (And Get a New One)”. Mas o sucesso ambicionado voltou a fugir-lhes – talvez porque o adocicado das suas melodias pudesse ser confundido o rock grandioso dos Queen numa altura em que eram valorizadas a provocação e a contestação, ou porque o som e a imagem continuava a saltar fora de qualquer definição do rock/pop, ou pela riqueza das suas letras ser quase imperceptível, ou simplesmente pelo falsete de Russell ser irritante para muita gente. A primeira fase da sua carreira, e talvez a mais brilhante, findava aí.
Então, e após um álbum quase anónimo com uma capa verdadeiramente kitsch (“Introducing Sparks”, que inveja a sua capa faria à Ágata durante os anos oitenta), os manos Mael reinventaram-se como um grupo electrónico, aliando-se a Giorgio Moroder para criar uma segunda obra-prima, “Nº 1 In Heaven”, em 1979. A faixa-título é uma soberba canção que influenciaria tanto Blondie como Pet Shop Boys ou Depeche Mode. Apenas seis faixas com um ambiente já bastante distante do sentido em “Kimono My House”, mas um álbum bastante coerente entre si e revolucionário para a época. Os Sparks tinham voltado a mandar uma pedrada no charco. Nos dois anos seguintes, mais dois bons álbuns: “Terminal Jive”, uma espécie de segunda parte de “Nº 1 In Heaven” com muita qualidade e “Whomp That Sucker”, de regresso a um “formato-banda”, com os instrumentos convencionais guitarra-baixo-bateria de volta e um ambiente muito “cartoonish” a povoá-lo – confirmar em “Tips For Teens” ou “Wacky Women”, sendo esta última faixa talvez o mais próximo que os Sparks estiveram do punk.
O resto dos anos oitenta e a globalidade dos anos noventa trariam a fase menos interessante dos Sparks. O flirt com o techno foi evidente e esse foi um campo que levou o brilho dos Sparks a perder intensidade – eles que já não eram nenhumas crianças por esta altura. Este não era o território indicado para fazer sobressair as suas grandes potencialidades. Mas era algo natural que eles soçobrassem a este apelo, dado que o principal compositor era teclista e, como tal, muito mais próximo de todas as experimentações sintéticas deste género musical. Ainda assim, “Plagiarism”, de 1997, é uma inovativa e interessante aproximação essencialmente electrónica às suas próprias canções – um pouco como os Mão Morta fizeram com o seu “Revisitada”, embora noutro contexto.
Já neste século, os Sparks provaram a sua enorme resistência ao tempo e lançaram, entre outros álbuns, “Lil’ Beethoven” em 2002, uma obra que aproxima pop, techno e música clássica com resultados, mais uma vez, surpreendentes. E, além do mais, desenvolveram um novo conceito de espectáculos ao vivo: durante 21 dias seguidos de Maio e Junho de 2008, em Londres (a sua casa adoptiva), tocaram TODAS as suas músicas de TODOS os seus 21 álbuns por ordem cronológica – um bilhete, um álbum por inteiro. Quem diz que estes homens já são sexagenários? E eles prometem não ficar por aqui.
De Ron e Russell Mael pouco se sabe a nível pessoal – e também pouco importa. Deixemos as suas canções, a excelente voz de Russell e o liricismo inspirado, embora por vezes repetido, especialmente nos tempos mais recentes (por exemplo, “My Baby’s Taking Me Home” arrasta-se durante mais de quatro minutos apenas com as palavras que constam do título) de Ron, falarem por si. Os Sparks já andam há quase quarenta anos a desbravar território e mantêm-se semi-anónimos. Sorte de quem os conhece – e eu só tive este privilégio graças à VH1 Classic. O mundo parece não estar ainda preparado para esta dupla genial de irmãos californianos.

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