terça-feira, outubro 06, 2009

O Rapaz das Pizzas

Às voltas numa Yamaha XT, com o oleado posto para proteger da chuva e o óleo a escorrer pelas caixas de cartão. Viver rodeado de óleo incomoda ao princípio; depois, a gordura entranha-se no espírito com maior facilidade do que nas unhas. Sinto-me uma espécie de croquete humano. Estou no fim da linha dessa longa dinastia de desalinhados que são os estafetas. A humanidade é, no geral, pouco tolerante para comigo. Podiam todos compreender que devo ser um sujeito com algumas limitações para estar a fazer este trabalho, que é o trabalho que ninguém quer. Eles querem lá saber. Exigem demasiado de um tipo que não é suposto ser demasiado bom. Todos acabam por pensar que me perdi, logo ao fim de dez minutos de espera. Mas não. É apenas a mota que não dá para mais. E, parecendo que não, também preciso de tempo para respirar. O frio entra-me pelos buracos nos dentes e as mãos enregelam-se de tal forma que nem sei se vou ser capaz de enrolar a próxima ganza. Sempre me distraio com as ganzas, dão-me a ilusão de ser mais qualquer coisa do que realmente sou e de estar a andar a mais velocidade do que realmente ando. E tenho tido sorte, só parti por uma vez a perna quando derrapei numa valeta mal iluminada. Enquanto os vossos cus descansam cómodos no quentinho das vossas casas a ver a final que ninguém quer perder, eu ando por aí a distribuir a vossa refeição pré-fabricada. Todos pensam que eu me divirto a andar por aí a descobrir ruas e pracetas obscuras e a sacar cavalinhos. Mas quem quer fazer isso com meia dúzia de pães de alho e pizzas extra-queijo atrás? Essas são as piores. O cheiro do queijo é maldito e só se consegue aturar a mais de sessenta a hora contra o vento e com a viseira aberta. Já pensei algumas vezes em cuspir nessas pizzas, só naquela de dar uma de rebelde e exteriorizar o meu enjoo. Mas acho que o cozinheiro já deve ter feito isso por mim e não tenho assim tanta saliva excedentária quanto isso. Pensam que temos muita liberdade e que ninguém paga a liberdade. Mas eu só queria que me dessem mais uma gorjeta ou outra. Mal ganho para o tabaco, que está caro. Ainda por cima, o vento fuma sempre a meias comigo, é um cravas de primeira. O meu sonho: que finalmente a dona de casa me convide a entrar para uma sessão de sexo sem limites. O meu pesadelo: as calzones a escaldar numa morada errada. O que eu faço por um punhado de trocos. Devia ter estudado mais. Mas sei que os livros não eram para mim e isso foi tudo o que eu consegui aprender. Assim nem ganho dinheiro nem treino motocross como deve ser. O chefe já me disse que não quer mais amolgadelas e que acha que ando a gastar muita gasolina. A minha sorte é que não tenho muita concorrência. Qualquer puto ganha mais a mendigar junto do papá, da mamã e da vovó do que a entregar comida instantânea porta-a-porta. Não estão para isso, todos os seus desejos e vícios são sustentados de uma forma ou de outra. São uns sortudos que não sabem a sorte que têm. E os putos já sabem que os argumentos dos filmes pornográficos são uma grande fantochada, nenhuma dona de casa quer nada comigo, para mais tendo eu uma dúzia de rondas por realizar e um bafo que denuncia muito tabaco e algumas minis. Elas abrem-me as portas em camisa de dormir, lá isso abrem, as desbocadas, mas nunca estão sozinhas. O terror de qualquer mulher que pede uma pizza é estar sozinha. Elas fazem logo questão de mostrar que redes sociais são com elas. Nunca devem ter visto um filme pornográfico, com certeza. Logo no hall de entrada, apresentam sempre várias fotografias de grandes grupos sorridentes, geralmente sempre na mesma posição e sempre com as mesmas caras de felicidade forçada, flashes demasiado fortes, pupilas vermelhas ou olhos fechados, péssimos enquadramentos, cores foleiras, a alegria da vacuidade atirada à cara do tipo encharcado e de capacete na mão, pensam que me fazem inveja com isso e com o telemóvel colado ao ouvido, discutindo os últimos incidentes da vaca da Herondina lá do gabinete, nem me olham de frente, nem se importam que a sua lingerie seja translúcida, enquanto o namorado, ou amigo, ou primo que lhe salta para a cueca ocasionalmente, ou gajo que simplesmente está por lá, me despacha com um desprezo que nem a um animal se dá, contando as moedas escuras do fundo da carteira para me presentear como se presenteia um inútil arrumador de carros. E eu ainda não cheguei a esse ponto de parasitismo social travestido de actividade com interesse público, mas se calhar era melhor, chateava-me menos e definiria eu mesmo o meu plano de trabalhos. Raramente há um sorriso, um toque, uma migalha de calor humano que compense as nódoas do molho de tomate. Já nem falo de gorjetas de um euro. Mas tudo bem, tenho os meus defeitos, gosto da pinga, gosto da erva, gosto de tuning, se tiver que roubar até roubo, desde que não conheça a pessoa e que não tenha que lhe fazer muito mal. Se calhar o problema é meu. Só que agora quero atinar. Quero que digam “eh pá, o rapaz das pizzas é o melhor profissional que eu já vi” ou “vamos comprar uma mota decente para o rapaz”. Ou simplesmente “ele merece”. Merecer o quê? Qualquer coisa não tão ruim. Por exemplo, “o tipo devia dar-se muito bem numa oficina. Ou num talho. Ou num café a servir à mesa”. Não peço mais. Contudo, o jogo que aqui se joga não é esse. Eles é que pedem. Eu apenas vou atrás. Se tiver que recomendar alguma coisa, digo que “a pizza da casa é a melhor”, é o que o chefe diz. Mas não sei se é. Já não como pizzas há algum tempo.

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