sexta-feira, novembro 17, 2006

O Racismo Intelectual

Arménio é um quadro superior da sua empresa. Aparenta 50 e muitos anos. Detém um curso, superior ou não, relevante ou não, ninguém sabe; apenas diz que tem um curso e isso é suficiente para que obedientemente lhe tratem por “doutor”, o que reforça ao escrever e falar de uma forma literária, demasiado cuidada, mesmo se está a pedir uma fotocópia de um documento sem importância. Até aqui, tudo bem. Já o facto de ser alguém socialmente inserido que não vive de biscates é bom. Nada de muito concreto podemos apontar ao Arménio por enquanto, embora quando a colega do lado chame “doutor Arménio” esteja lá no fundo a soltar um pouco as pontas da sua ironia e a levantar suspeitas sobre a inatacável idoneidade de Arménio.
De facto, Arménio tem um grave problema. Insanável, para mais considerando a sua quase 3ª idade. Arménio caíra nas garras do politicamente correcto, afundara-se nas entranhas da demagogia.
Arménio passa por pessoa que lê muito, mas não sabe ler; Arménio pensa o que outros pensam e não pensa por si; Arménio age como já alguém agiu e não é capaz de sair do carril onde se enfiou; Arménio defende o óbvio sem sequer ousar considerar que poderá existir algo não directamente visível; Arménio julga que já viu tudo e que nada lhe surpreende; Arménio acha que o futuro estará aberto apenas para si e nunca para outro alguém.
O modo de acção é simples: pega-se num tema qualquer e adiciona-se uns pozinhos de polémica. Haverá um ou mais lados em confronto. Arménio, qual máquina afinada, escolhe invariavelmente o lado do socialmente e eticamente responsável, inclina-se favoravelmente e sem hesitar para a maioria. Conservador? Nem por isso. Se a moda for progressista, ele também será. Vira-casacas? Não necessariamente. Mas já foi um fervoroso adepto do Algarve no Verão e agora acha isso ignóbil, seguindo a corrente actual. Sendo português, eis alguns exemplos concretos daquilo que Arménio é: católico, casado e pai de filhos, benfiquista, residente num grande centro urbano, mordaz com os políticos irresponsáveis que nunca nomeia e, acima de tudo, muito melhor orador do que executante. Obras feitas? Talvez o quadro espetado por cima do aparador na sua sala.
Quando sujeito a críticas, leia-se, quando beliscam aquilo que protege afincadamente de forma a preservar uma imagem de indivíduo socialmente bem inserido, Arménio enerva-se. Foge para a frente. Desvaloriza sem pudor os oponentes. Diminui-os como se tivesse uma força redutora e com isso apazigua o seu espírito rígido. Não tem uma resposta credível, não consegue ser irónico, nada. Apenas tenta destruir o foco de ameaça. Nisso, Arménio e Penicos (personagem abjectamente fascinante no prime-time da sua vida, conforme relatos dum amigo comum) são iguais: não admitem que haja linhas de pensamento divergentes das suas. As suas personalidades são o umbigo do mundo e qualquer discordância faz tremer o cerebrozinho acostumado duma forma avassaladora, como relâmpago disparado do inferno directamente ao Olimpo das suas personalidades, derrubando os místicos pedestais de superioridade mental onde se tinham auto-instalado. Mas enquanto Penicos esforçava-se por ser o mais diferente, Arménio esmerava-se por ser o mais igual. Eis como pólos opostos se tocam.
Num dos colóquios frequentados por Arménio, algo que prazenteiramente aceitava, pois colóquios e prestígio movem-se em paralelo, um jovem idealista, certamente irresponsável por não saber a quem se dirigia, expôs-lhe as suas ideias – que eram terrificamente contra o senso comum partilhado, naturalmente, por Arménio. Diga-se de passagem que as ideias nem seriam assim tão revolucionárias, mas até aí pertenciam exclusivamente a um nicho não muito querido da população, o que, igualmente de modo natural, repugnava o consensual Américo. Foi como um ataque à bomba a todo o edifício intelectualmente imaculado de Arménio. Soaram alarmes ribombantes na sua cabeça.
Os truques eram sobejamente conhecidos. Passavam por esconder a sua inexistência de argumentos e a incapacidade de lidar com diferentes opiniões. Arménio primeiro declarava-se não estar surpreendido, que já esperava aquelas reacções. E porquê? Porque o jovem interlocutor era, sem rodeios, um “rapazinho sem provas dadas” (atente-se no sufixo “–inho” – mais sarcasmo do que este não se encontrava em Arménio…), “imberbe”, “inconsciente” e que devia olhar para Arménio e aspirar, como se alguma vez fosse possível, um pouco do seu digníssimo conhecimento das causas e das coisas. A mensagem era simples: o jovem “NÃO PRESTA!”, o jovem “NÃO SABE O QUE DIZ!”, o jovem chegava a ser “OBSCENAMENTE INCULTO!”, e com isso Arménio arrumava a questão. Arménio extremava posições, dando largas ao seu racismo intelectual: eu e só o que eu penso; o resto é igual a nada. Para rematar, recomendou que o jovem lesse o autor X, que nada diz, mas que muito vende; e que visitasse o lugar Y para ter uma impressão daquilo que acabou de dizer e verificar que, “claramente”, não faz nenhum sentido – embora o lugar Y fosse um cemitério de vaidades fora do prazo, lixeira de costumes e ideais gastos de tanto uso, amplamente conhecida pelo próprio jovem, pois lá desenvolvera o seu asco e gerara anti-corpos formais com que sustentara na sua intervenção.
Na audiência gerou-se um burburinho, mas as reacções acabaram por ser de apoio a Arménio. “O Arménio é limpo e recto, confio nele”, “Pensando bem, aquilo é um puto que não sabe o que diz”, “Nunca ouvi nada tão disparatado”, “O Arménio lá sabe”. O toque final foi ouvir Arménio disparar frases feitas e expressões de repúdio banais ao som dos aplausos do público e despedir-se do jovem com o generalizante “vocês, os novos, têm muito que aprender comigo, se querem ser alguém no Mundo!”, para gáudio de um público que mergulhava na prateleira social por onde Américo se estendia. O jovem, esse, foi chutado metaforicamente para o canto donde, se fosse sábio, nunca deveria ter saído. O rótulo espetado na sua cara e a inferior catalogação imediata não lhe fizeram, porém, mudar de opinião. Ficara, talvez, um pouco espantado com a gratuitidade dos veementes protestos contra algo que julgava válido, mas, enfim, sempre podia ser líder ou parte de um subgrupo marginal condenado ao fracasso, segundo o clarividente Arménio. Resposta era algo que sabia que iria cair em saco roto, daí o seu abandono do colóquio, sob vaias solidárias com a posição de Arménio.
Arménio pulula por aí, sempre pronto a abrir a boca e repudiar tudo o que não pareça são e que não jogue exactamente como os preceitos estabelecidos ditam. Livrai-vos, pensadores alternativos, de encontrar Arménio pela frente. Ele dá cabo de qualquer esperança de discussão construtiva e declara-vos impróprios para consumo. Mas como diria a colega dele, baixinho, quando o impoluto Arménio fecha a porta do escritório e se acomoda no cadeirão junto do computador:
- O Arménio? Só gosto dele quando está calado a ler o jornal.

1 comentário:

. disse...

Arménio arménio só m'lembra do Calouste Gulbenkian. Graças aos santos que para cá veio, apesar dos outros arménios. Quantos portuga médio não andaria com o chavo para a frente e para trás na segunda circular aos fins de semana, sem sítio para se porem (a descansar), se não fossem pelos tostões do arménio. Já este Arménio é o chamado bom chefe de familia, se bem que a instituição de que ele fala esteja já morta e enterrada há décadas. A outra instituição ainda anda aí a abrir telejornais e a gerar fracturantes debates multiculturais (suponho bem?) por tudo o que é descampado e baldio nos subúrbios esquecidos de .pt.

«Mas já foi um fervoroso adepto do Algarve no Verão e agora acha isso ignóbil, seguindo a corrente actual.»

LOL