quinta-feira, março 01, 2007

Os Anos 80 Já Acabaram

Maria de Lourdes apontou na sua lista de supermercado, a seguir ao feijão frade e antes do pão ralado: “1 lata de laca”. As suas filhas protestaram. Não por se ter incluído um produto químico entre dois produtos alimentares, quebrando o seguimento lógico do rol. Nada disso.
- Mãe, já ninguém usa laca…
Pois é, Maria de Lourdes. Os anos 80 já acabaram.
Nostalgia das nostalgias. Saudade das saudades. “Será mesmo possível?”, interrogou-se Maria de Lourdes para si própria. Sim, Maria de Lourdes, é possível uma vida sem laca no século XXI. É corriqueiro esquecermo-nos que esse complemento capilar existiu hoje em dia. Um abalo súbito percorreu toda a volumosa cabeleira de Maria de Lourdes, já estafada de tanta permanente e mise.
O que era estranho para Maria de Lourdes era o facto de ela não conseguir discernir o mundo em evolução à sua volta – para ela, a moda atingiu o zénite lá por 1986 e a partir daí desapareceu. A moda soçobrara com um clique, uma vez atingido o cume do bom-gosto. Esfumara-se. Desintegrara-se. O conceito morrera. Era como o “fim da história” de Marx, com concretização real e indolor. Apenas Maria de Lourdes parecia ter estado atenta.
Assim se tinha deixado cristalizar: latas e latas de laca despejadas furiosamente por cima do seu cabelo a atirar para o louro; unhas das mãos e dos pés pintadas com um verniz encarnado-vivo, orgulhosamente exibidas a par dos lábios matizados no mesmo tom; olhos cercados por um tom verde seco que às vezes podia ser azul-marinho; e, acima de tudo, uma forma de vestir macabramente kitsch, combinando cores inusuais com padrões indizíveis e feitios semi-circenses.
A única suspeita de Maria de Lourdes tinha sido em relação à roupa: já tinha de certa forma acomodado a escassez de camisas verdes com motivos que recordavam as savanas de África e os vestidos folheados de inspirações colegiais em cor-de-rosa com florzinhas lilazes a salpicar, entre outras peças do mesmo género – vivaças, extrovertidas, a roçar o apalhaçado. Uma vez por outra, lá dava de caras com saias azuis celeste com botões castanhos impregnadas com um cheiro a mofo numa caixa abandonada nos confins de uma megastore. Sentia-se particularmente bem com o preço de saldo das peças, mas ao mesmo tempo uma sensação de desconforto por ver aquele vestuário tão alegre e bem-disposto arredado das montras, dos expositores e mesmo daquele espaço onde se amontoavam peças com ligeiros defeitos a 1€. Noutros tempos, era relativamente fácil.
O cabelo era como uma imagem de marca: volumoso, comprido, encaracolado, ondulado, ruivo ou louro… tinha de ser vistoso e indefectível perante o vento. Que belas cabeleiras se viam para aí. Mesmo a Margaret Thatcher, do alto da sua imponência de ferro, se aprumava caprichosamente defronte do espelho todos os dias, religiosamente, para que nem um fio se soltasse. Sim, porque o estilo era vital para a satisfação de uma pessoa. E a laca o produto miraculoso para chegar à redenção. O gel é somente um substituto distante e ineficaz.
Mesmo os homens tinham outro charme: fatos-de-treino de marcas sombrias preenchiam o imaginário popular, fartos bigodes para estilos rústicos, mullets no cabelo para os mais modernos e ainda os caracóis para os ousados da nossa praça. Depois, fatos formais de todas as cores comportáveis numa paleta, reforçados com volumosos chumaços para confortar os ombros. Havia alegria e um sentimento de liberdade total na moda; não existia qualquer restrição nas combinações, nas invenções, nas provocações; e entre o vídeo “Wake Me Up Before You Go-Go” dos Wham! e a apresentação do Clube Amigos Disney pelo Júlio Isidro era muito difícil escolher – Maria de Lourdes ia, contudo, pelos Wham!, porque todo o seu imaginário adolescente ainda se revolvia em torno do George Michael.
- Mãe, o George Michael é gay. Ele está a borrifar-se para mulheres.
Como? Ainda iriam dizer a Maria de Lourdes que o Michael Jackson é branco, não? Bolas. Deve ter surgido outra corrente na moda, entretanto. Como fora possível deitar abaixo toda uma conquista cultural de uma geração? Como fora possível rejeitar os conceitos de despreocupação e extravagância que polvilharam aquela parcela importante da sua vida, desde o “Playback” de Carlos Paião ao “Conquistador” dos Da Vinci? O que é feito dos Da Vinci, por falar neles, que tão bem imitavam os Eurythmics? E os Renaults 5 vermelhos com autocolantes do “Correio da Manhã” estampados atrás avisando “BEBÉ A BORDO”? E o “1,2,3” com o Carlos Cruz? Um grande apresentador com óculos bem à sua medida…
- Mãe, o Carlos Cruz? O mesmo da Casa Pia?
Maria de Lourdes interrompeu a conversa. Não vale a pena. Se existe choque de gerações, que seja um choque cheio de força, vamos assumir o desnível. Maria de Lourdes sentia-se bem consigo, iria lutar pelas suas convicções. Os outros que se deleitassem nesse mau gosto de cabelos curtinhos, barbas aparadas, roupas Dior e fatos Boss. Um dia, julgava, arrepender-se-iam de terem profanado a cultura do passado e de a terem subvertido em nome da simples ruptura com a geração antecedente. Iriam pagar caro pela ousadia e Marco Paulo e David Hasselhoff voltariam em beleza, pujantes e icónicos, um com o microfone e o outro com um carro inteligente e falador a debitar palavras mecânicas sobre uma banda-sonora composta por sintetizadores.
Mas a verdade nua e crua é que é mesmo difícil obter laca para o cabelo. Talvez numa loja chinesa, de qualidade duvidosa… Maria de Lourdes solucionou:
- A laca deixem-na comigo; tragam um Denim para o vosso pai em substituição.

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