quarta-feira, março 14, 2007

Chico Morno

Recordo-me do momento em que Chico deu mais nas vistas. Não naquela semana ou naquele ano, mas em toda a sua vida. Preparávamo-nos para uma entrevista de emprego. Naqueles minutos ansiosos que precedem a entrada na sala para uma reunião de grupo, aquele preceito americanizado decalcado de uma vulgar terapia (não de alcoólicos anónimos, mas de futuros quadros empresariais anónimos), houve alguém que perguntou, como forma nervosa para quebrar o gelo:
- Qual é a vossa opinião para o jogo de logo à noite?
- Vai dar empate! – atalhou um engravatado cheio de gel.
- Não, não! Nós vamos ganhar! 2-0, sem espinhas! – contrastou um robusto e distinto homem, já em jeito de preparação para a entrevista.
- Ai, que os homens só pensam em futebol… Que importância é que isso tem? – desmoralizou a senhora do decote, que bem podia destroçar facilmente as ambições de emprego de qualquer outro, fosse o entrevistador um homem adepto de pornografia barata. Mas Chico calou todos:
- Mas… nós temos opiniões?
Chico não mais abriu a boca, nem fora nem dentro da sala. Não ficou com o emprego.


Como Chico chegara àquele preâmbulo já era um mistério por si só. Chico, vim a saber, era o cúmulo da vulgaridade. Quando abriu a boca daquela vez, tinha sido, provavelmente, a altura em que mais de 3 pessoas se concentraram nele.
Chico nascera por acaso, após uma festa casual cujos pais nem deviam ter ido. O pai fugira quando soube a mãe grávida, regressou passados poucos meses, arrependido. A mãe lá lhe pariu, sem muita dor, mas também sem muita alegria. É capaz de ter provado do mamilo dela na sua infância, só que mais comuns foram as vezes em que bebera leite em pó dum biberon rasco já utilizado com a irmã mais velha. Não que a família fosse muito pobre; não era – mas não se podia dizer que fosse abastada. Cresceu numa terra que está no mapa, sim senhor, mas à qual ninguém presta muita atenção. Não era uma vila pequena, mas também não era assim tão grande para que fosse uma cidade. Não estava bem ao norte nem bem ao sul e era demasiado descentralizada para que se considerasse no centro. O clube de futebol equipava-se de cinzento, nunca tinha estado no topo e raramente tinha descido às distritais. Também nunca jogara com um grande. Chico inscreveu-se para jogar nos infantis. Não tinha mau toque de bola, mas estava longe de ser um craque. Desenvolveu uma fugaz carreira entre lateral-direito e trinco, actuando esporadicamente como guarda-redes. Sempre como suplente. Aquecia durante um jogo por 45 minutos até o treinador se esquecer dele e a equipa recolher aos balneários. Chico ia atrás. Quando Chico deixou de comparecer aos treinos, ninguém deu por isso – apenas deram pelo acréscimo de mais um colete de treino, que foi utilizado por quem lhe seguiu.
Na escola, Chico obtinha notas médias. Não era genial. Não era completamente parvo. Movimentava-se com facilidade entre os 40 e os 60%. Chumbava a uma ou outra disciplina, excedia-se numa ou noutra, mas sempre sem louvores nem reprimendas especiais. Repetiu um ou dois anos. Levava cacetada no recreio de vez em quando, mas não era o alvo preferencial. Parecia apanhar calduços por acréscimo. Não fez grandes amigos. Também não gerou grandes inimizades. Não teve namoradas, mas as raparigas também não gozavam muito com ele. Nas fotografias de turma não se incluía em nenhum grupo: colocava-se a jeito para a foto, nem muito atrás, porque não era assim tão espadaúdo; nem muito à frente, porque não era anão. No meio ficavam as raparigas, ele lá arranjava um espaço. Não participava em trabalhos extra-curriculares, não se sentia com vontade nem direito de participar, muito menos lhe pediam qualquer coisa que fosse. Não lhe conferiam responsabilidades nem ele assumia nenhuma.
Chico nem sequer tinha um nome diferente. Chicos há muitos. Não tinha um aspecto visual vistoso, possuía olhos e cabelos castanhos, uma cara e uma estrutura medianamente mediterrânica. Chico comungava de uma timidez plácida, não muito exacerbada, mas sem nunca raiar os limites da pequena irreverência. Passava amiúde despercebido. Gostava de futebol, mas não era fanático; não apreciava política, sem ser indiferente nem contestatário. Só por uma vez participou numa manifestação, que foi violentamente reprimida – mas não apanhou com os cacetetes nem com os jactos de água, nem sequer fugiu a sete pés: os polícias correram por ele e ele assistiu a tudo. Gostava de programas de matiné ao fim-de-semana. Por vezes, frequentava a assistência, mas as câmaras nunca lhe captaram a cara, preferiam focar as velhotas esganiçadas e os deficientes motores da primeira linha. E só por uma vez esteve próximo da tragédia, quando decidiu apanhar um avião para o Brasil. O avião que esteve para apanhar despenhou-se, mas Chico ficara em terra, devido a atraso seu. A televisão preferiu mostrar o cão esquecido por um dos desaparecidos no desastre numa jaula perdida no aeroporto. Chico desistiu do Brasil, voltou para casa num transporte público e não arranjou lugar sentado.
Chico é aquela pessoa que está atrás de nós na fila de supermercado, à nossa frente num engarrafamento de trânsito, ao nosso lado num concerto. Simpatizei com Chico naquela entrevista, com aquela resposta atabalhoada própria de quem desconhecia os prazeres duma personalidade vincada. Ele faz do anonimato uma profissão de fé, embora talvez não o assuma. Ele é o anonimato. Nada mais, nada menos. Uma comida nem salgada nem doce, nem quente nem fria. Para mim, ele é o Chico Morno.
Porque falo dele? Não por ter morrido, não por ter feito nada especial. Apenas faltou-me um jornal enquanto estava na casa-de-banho. É pena, Chico, lembrar-me de ti só nestas ocasiões. Fica sabendo, porém, que tens o meu respeito, se souberes o que isso é. Devo ter sido o único a prestar-te esta homenagem.

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