quarta-feira, novembro 26, 2008

Beto II

- Beto, posso fazer-lhe uma pergunta?
Galdino só podia estar a sonhar. Mas ainda lhe reconhecem na rua? Espectacular! O objectivo concretizado de uma vida inteira. Orgulho. Vaidade. Espera aí!... Estaria o anónimo a dirigir-se mesmo a ele?
- Ocê tá falando com eu? – tenta certificar-se Galdino, pouco crédulo nas suas próprias qualidades.
- Claro que sim, Beto.
- Pôxa, qui légáu. Ocê ainda si lembra dji eu?! Ôba! – parece uma criança, o Galdino. Aquele sorriso fininho e trocista como só os bons brasileiros amantes de caipirinha com elevado teor de cachaça conseguem desenhar num rosto, os olhos afundando-se num refastelado comprazimento, os dentes meio lascados e com enormes espaços entre si – Galdino ficou muito contente. A alegria foi tanta que os papéis inverteram-se: Galdino seria a estrela, mas comportava-se como um fã adolescente perante o seu próprio fã. Paradoxal, mas em Galdino já esperamos de tudo um pouco.
- Beto, você é mesmo beto?
- Ué?
- Se você é mesmo beto?
- Pôxa, acabei dji dizê qui sim… – “mau”, pensa Galdino (já traduzido para português), “mas queres ver que este gajo afinal está enganado? Logo vi, era bom demais para ser verdade…”
- Sim, eu sei que você é o Beto, mas queria saber se era beto…
- Não tô entendendo, não…
- Pois, se calhar os brasileiros não sabem bem o que é um beto… Bolas, não me diga que após tanto tempo em Portugal não sabe de nada disso…
- Não sei dji qui ocê está falando… – Galdino já só pensa em se vir embora rápido, não vão encontrar nele as culpas para qualquer coisa. A única culpa que Galdino assume é a de ter marcado uma vez um golo que alimentou as expectativas do clube das grandes expectativas. Isso quer dizer que Galdino não assume a culpa de ter defraudado as expectativas de quem construiu essas desmesuradas expectativas, pois eles sempre as construíram enquanto bebiam vinho de mesa pelo garrafão em cima de um pano da louça num banco de jardim. Mas, pronto, já se tinha resignado e não valia a pena estarem sempre a zombarem com a figura dele. Já nem sequer tinha o cabelo amarelo, situação de que agora se arrepende largamente – consta que o milhafre Vitória até o quis arrancar à bicada, julgando estar ali um canário indefeso…
- Eu explico: “beto” em português quer dizer um tipo de Cascais… com sapatinho de vela e cabelo que foi ao barbeiro dentro de uma forma de alumínio… com um gosto execrável para a moda… filhinhos do papá que adoram pólos de râguebi…
- Não sei dji nada… Eu sô apênais o Beto… Por favô, não xinga eu…
- Não viste nada? Bolas, não conheceste ninguém assim?
- Não meismo. Eu só via sujeitos gorrdos, dji bigodji, falando alto e com palavrão…
- Ah, pois é, eras do Benfica… realmente, aquilo é só xungaria e tipos do 9º ano para baixo… se bem que há sempre um beto ou outro adepto do Benfica… afinal, os tipos são para cima de 12 milhões…
- Ué? Não eram seis?
- Ó Beto, pá… És tão bom a ler jornais desportivos como para jogar no meio-campo… Nunca leste “A Bola”? Eram seis milhões quando lá estavas, agora são sensivelmente o dobro e por volta de 2015 será o mundo inteiro, menos o Dias Ferreira.
- Nossa, qui clubi grandji…
- Sim, o maior na fanfarronice e na propaganda para idiotas, mas eles gostam de acreditar que são mesmo os maiores. É uma espécie de esquizofrenia congénita. Também acreditam no Pai Natal, que o Nuno Gomes tem dois testículos e nas promessas do Governo. Mas não nos desviemos da conversa: então tu não és beto?
- Sou Beto, sim. Não é meu nome dji batismo, mais sô conhecido por Beto.
- Irra, que ainda és mais parvo do que pareces… Jogaste nos vermelhos pouco tempo, mas isso afectou-te mesmo, pá… Mas deixa estar, olhando para esse aspecto, não tens mesmo perfil de beto.
Galdino amargura. Já lhe tinham dito que não era grande jogador, já lhe tinham dito que cheirava mal, já lhe tinham acusado de perder os jogos sozinho mesmo quando era o único que corria… mas nunca lhe haviam dito que não tinha perfil para ser ele próprio. Pelo menos, ele assim o entendeu – os meses que passou no grémio do pássaro a que chamam águia toldaram-lhe o pouco raciocínio lógico que possuía e agora já não compreendia nenhum trocadilho. Só grunhidos “hum-hum” e arrotos sonoros. Chamem-lhe o preço da (má) notoriedade efémera. Galdino fica triste.
- Pôxa… Não tá justo, eu sô bom profissionau…
- És, pá, tu até és… mas havia necessidade de ter aquele cabelo? Perdeste toda a aura, Abel Xavier só há um!...
Ah!, o cabelo amarelo! Tinha de vir à conversa.
- Foi uma fase… houvi a fasi do clubi fora das competições européias, houvi a fasi do DVD do presidentji, houvi a fasi do Deus Manuel Costa e houvi a fasi dji eu com cabelo amarelo. Já passou, né?
- Eh pá, mas agora ainda pareces pior… podiam confundir-te com um assaltante de bancos…
- O presidentji estava disponíveu para mi dá lições… mais dipois disse que eu já não era preciso, qui iria fazê todo o trabalhinho sozinho…
- Deixa estar. Foi um bocado parvo da minha parte pensar que podias ser beto… és apenas mais um brasileiro banal que teve o seu momento de glória. Salvo seja.
- Isso é bom?
- Acho que sim, pá, acho que sim… bem, visto que não és beto, já pensaste em usar outra alcunha? É que tu, bem vistas as coisas, estás a utilizar uma alcunha que nada condiz contigo… tu és mesmo um bronco de primeira… devias usar uma alcunha tipo Bronco, ou Bruto, … ou então nem alcunha tinhas, eras mesmo o Galdino… Beto? Beto!
Galdino foi-se embora. Farto de aturar gente que nunca compreendeu o seu génio indecifrável, foi recortar pedaços de jornal do seu grande herói Koeman. Depois iria afogar mágoas com uma bela picanha, sonhando com o dia em que seria finalmente reconhecido pelo seu valor… qualquer que ele fosse.

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