quarta-feira, abril 18, 2007

Antes Quebrar Que Torcer

O futebol sempre foi pródigo em expressões peculiares. As célebres tiradas de cariz Gabriel-Alvista, do género “remate com o pé mais à mão”, “pontapé de ressaca da meia-lua”, “colocar toda a carne no assador” ou o contemporâneo “autocarro em frente da baliza”.
(Uma nota antes de prosseguir: o Senhor Gabriel Alves não merecia ser escorraçado como um cão velho e doente, depois de tantos e tão bons serviços prestados, de tanta dedicação e de tanta metáfora atirada para o ar no auge do seu delírio apaixonado pelo jogo… para mais, havendo por aí alguns pseudo-comentadores que só dão vontade de colocar a televisão em “mute”.)
A expressão que propunha lançar em cima da mesa para reflexão não é exclusiva do futebol. Mas certamente que já utilizámos sobre determinado jogador, ou treinador, a frase feita – “antes quebrar que torcer”.
Esta descrição, quando aplicada a um jogador de futebol, revela-se cinematográfica. Geralmente, visualizamos na nossa cabeça um jogador de sobrancelhas carregadas, lábios cerrados, um pouco de baba a escorrer pelo canto da boca, peito autoritário e inchado, punhos fechados, resistência física assinalável e, acima de tudo, um dom profícuo para jogar com os pitons levantados, acertando mais nos outros corpos e menos na bola. Um jogador com reconhecidas limitações técnicas, mas com uma enorme disponibilidade para o choque e ávido pelo confronto corpo-a-corpo. Um jogador sem conhecimento do conceito de “fair-play”, mas com elevada probabilidade de cair no goto dos adeptos mais assanhados da sua equipa, tal a fúria destrutiva e o desprezo por qualquer esboço de misericórdia pelo adversário. Enfim, imaginamos Paulinho Santos (na foto, é o tipo de azul e branco; não confundir com Rosicky, o checo que joga à bola e não quebra nem torce).
Paulinho Santos era um jogador que “antes quebrava que torcia”. Literalmente. Mas se torcesse um pescoço aqui ou além também ficava feliz. Todavia, a quebrar é que ele se especializou. As caneleiras nos anos 90 em Portugal eram produtos já de certa forma evoluídos, mas nunca nenhuma conheceu um antídoto anti-Paulinho Santos por detrás da sua massa carbónica. E Paulinho quebrava o que lhe aparecia à frente com um brutal instinto assassino. Depois das caneleiras, partiam-se as próprias pernas adversárias e canas do nariz, rebentavam-se uns cocurutos e rasgavam-se umas camisolas. Sim, porque ao artista do “antes quebrar que torcer” exige-se um reportório mais alargado que o simples carrinho sem timing ou a corriqueira cotovelada marota nas costas do árbitro.
Paulinho Santos gostava de quebrar. Era assim, o miúdo. Mesmo nas comemorações dos golos da sua equipa, Paulinho não condescendia. Domingos Paciência, nos seus tempos áureos, chorava quando marcava um golo. Primeiro, de alegria. Depois, de dor – é que Paulinho Santos felicitava o marcador do golo com sonoras cacetadas de mão aberta na cabeça do referido, no qual era coadjuvado por outros nomes ilustres na arte do festejo em bruto, como Fernando Couto, Secretário, Folha ou João Pinto, assumindo-se como um líder das tendências no balneário. Era ver Domingos a fugir e Paulinho, qual voraz caçador felino, correndo atrás dele como se estivesse a perseguir João Vieira Pinto, a espetar-lhe com um, dois, três, quatro calduços bem aplicados. E toda a gente achava-lhe imensa graça.
Quer dizer, nem tanto assim. É que isto do “antes quebrar que torcer” tem um toque eufemista. Para os adeptos do jogo viril (outra maneira de dizer jogo a descambar para a violência), Paulinho era um rapaz humilde, com espírito de equipa e de vitória, fiel a 100% para com o emblema que defendia com unhas e dentes (e pitons e murros e o que fosse preciso), incapaz de dar um lance como perdido ou de parar de correr durante os 90 minutos. Porém, para muita gente não adepta do FC Porto, Paulinho era apenas “sarrafeiro”, “sanguinário” ou “%&#$%&!”, sem qualquer valor intrínseco enquanto futebolista, estando no campo apenas com o intuito de desbastar pernas, amassar ossos e tingir de sangue os seus dentes. Isso do “quebrar antes que torcer” era apenas para entreter os parvos, conversa fiada impingida pelo “sistema”, porque na realidade o Paulinho devia ser banido antes de entrar em campo, apenas tendo em consideração o espírito de preservação do bem-estar físico dos seus adversários. E, para esses mesmos adeptos, Paulinho será para sempre o exemplo acabado do “trauliteiro”.
Não que Paulinho Santos fosse o único a “quebrar antes que torcer”. Hoje em dia, temos o novo profeta da expressão, o homem que arrastou o conceito do campo para o banco das tácticas: Jaime Pacheco (na foto é o careca). Se Paulinho impunha a sua “stamina” no relvado, Pacheco gesticula de olhos abertos junto à linha. Se Paulinho ia de perna levantada, Pacheco vai de fato de treino a exigir menos “jogo bonito”. Se Paulinho reclamava testa-a-testa com o árbitro no relvado, Pacheco reclama testa-a-testa com o árbitro no túnel de acesso. Irmãos ideológicos, ambos partilham a máxima do “antes quebrar que torcer” na sua plenitude. Se Paulinho ainda jogasse à bola, Pacheco reservar-lhe-ia um lugar cativo no onze, em qualquer lugar da defesa ou meio-campo. E de certeza que os avançados contrários iriam temer esse jogo.
Atentem bem nas personagens que “antes quebram que torcem”. Quase todas são nortenhas. Praticamente todos os utilizadores desta expressão são nortenhos. Em paragens mais meridionais não é usual encontrar muitos casos de “quebrar antes que torcer”. Coincidência? É um tema que fica para meditar.
É por estas e por outras que o futebol é rei – mesmo sem bola dá que falar e que pensar. Imaginem falar de automobilismo sem motor ou de boccia sem cadeira-de-rodas…

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