segunda-feira, abril 23, 2007

Burro

Aceita o teu papel. Deves submeter-te à rotina. Deves produzir. Deves servir. Deves estar satisfeito com o teu progresso. Com a tua casa. Com o teu carro. Com a tua mulher que passa horas ao telefone. Horas no cabeleireiro. Horas nas montras. Horas a debitar palavras sem grande sentido. Mas não serás tu também um ser oco? Oco de objectivos? Oco de conhecimentos? Onde está a tua história? Para onde vai o teu futuro? Sentes-te igual, sentiste uma vontade súbita de ser diferente. Mas nunca foste. Para quê aborreceres-te? Para teres complicações? Atrasos? Desprezos? Humilhações? Desafiar o quê, afinal? O que há para desafiar? Mas quem é que se deve desafiar? Onde está o poder? Onde está a reacção? Mas o que é que estão para aí a dizer? Será que o erro é apenas teu? Assume que o erro é só teu. Sê eficiente na atribuição da culpa. O mundo construiu-se pela justaposição de convicções muito correctas, disso não duvides. Não vale a pena tentares encontrar infiltrações nesta sociedade. A sociedade é um buraco negro em si mesma, absorve tudo, não deixa passar nada aos olhos de quem a aceita tal como ela é. Deixa-te ir como tens vindo. A chave para a tua saúde mental está na resignação. É muito mais simples deixar o peso recair sobre ti do que andar à procura de outro burro de carga. Ou a carga vai acabar por apodrecer no chão. Prefere o grão de arroz certo à sapateira desconhecida. Remete os teus sonhos para uma matiné do fim-de-semana e puxa o lustro ao teu soalho enquanto o peso da frustração te vai inclinando em direcção ao chão. O que mais te faz falta? Mas queres ser o quê, uma realeza dos contos de fadas? Queres o quê? Reconhecimento pela tua nulidade? Parabéns pela tua mediocridade? Abraços pela tua rudeza? Tens uma parede de elástico à tua frente que devolve todos os teus pensamentos menos próprios de volta à proveniência. Emites sons que não se ouvem no vácuo quotidiano. Tens uma cenoura à tua frente que cintila de vez em quando e que nunca te passará despercebida. Mas tens essa estranha veleidade de revelar laivos de inconformismo de tempos em tempos. Inconformismo? Para ti é-te suficiente escrever pataquadas? Vestir trapos? Idolatrar mortos? Frequentar comícios de bandeira ao vento? Ser o outro lado do espelho dos mongolóides que atacas no teu quarto? Isso é o teu inconformismo? O que é isso? É melhor que aceites o teu papel.

2 comentários:

. disse...

Encontrei um blog cujo subtítulo é A post a day keeps the shrink away. Pensei: ora aí está.

Gostava de saber desresponder às minhas próprias questões, no entanto o que desfaço, usualmente, é desacreditar o m/teu papel.

Rodrigues disse...

Belo subtítulo. O nosso mudou há coisa de 1 semana. Reacção. À estagnação.