quarta-feira, outubro 03, 2007

Como Se Pintam as Unhas dos Pés

- Viste o vestido dela?
Vânia contempla a sua ternurenta patinha tamanho 36 após uma demão do novel verniz dum conceituado laboratório francês.
- Horroroso.
Gracinda saboreia a acidez do adjectivo. Deixa que a qualificação negativa percorra lentamente todos os extremos nervosos do seu cérebro, sem escapar nenhum. Assim sabe melhor. Qual escanção do escárnio, há que saber apreciar a forma de diminuir terceiras ausentes. E este “horroroso” é das melhores castas. Como é delicioso conspirar.
- Deplorável.
- Ela tem um gosto terrível. Sempre teve.
- Só mesmo ela para comprar aquele traste!...
- Parecia uma matrona da feira.
Ainda mal refeita da anterior injecção onanística de maldizer, Gracinda explode numa gargalhada tão forçada quanto breve e sonora.
- AHAHAHAH!!! E que matrona!!! Será que não tem espelhos em casa, a tipa?
Assim mesmo, que é para todos saberem o quão Gracinda desgosta da outra. É sensacional arranjar aliadas que partilhem as mesmas mini-guerrilhas pessoais. O cheiro do verniz abafava-se por sopros na direcção das unhas, agora num tom carmim forte. Vânia tinha outros alvos, contudo.
- Mas olha que o cabelo da prima dela…
- Ui! Sabes que ela anda zangada com o Marcelo?
As unhas ficaram arredadas de atenção. Vânia arrebitou as sobrancelhas. A intriga que se avizinhava bem que exigia toda a sua concentração. Para que se querem as amigas? Para dizer mal das outras. As outras dirão mal dela. E ela, no centro desta teia de bisbilhotice, ocupa o lugar central, fazendo sempre o melhor do melhor. É tudo um jogo recíproco de troca de galhardetes. Se é segredo, há que divulgar. O que é evidente simplesmente não interessa. Considerem-se num mercado de informações pessoais onde a frontalidade não é, de forma alguma, valorizada. Onde a fachada é muito iluminada mas o interior está cheio de cuspo e vísceras prontas a rebentar. O breu da alma vai emergindo por sobre o matiz do verniz.
- Não me digas…
- A sério. O Marcelo já não pode com ela. Noutro dia, passei por eles no Shopping…
- O Shopping W, não?
- Claro, só vou a esse. Os outros são detestáveis.
- Simplesmente pavorosos, filha. De fugir. Eu faço como tu.
Não que Vânia não soubesse que Marcelo já andava chateado há muito com a prima da outra. Nada disso. Mas podia acontecer que Gracinda soubesse qualquer coisa mais. Não que Vânia não soubesse que todas as suas amigas iam ao Shopping W. Não. Havia que dar uma colher de chá à amiga de circunstância, uma pequena achega de proximidade para que ela se sentisse plenamente confiante para contar mesmo tudo.
- Mas ia eu a dizer, noutro dia passei por eles no Shopping… e o Marcelo estava cá com umas trombas… Ela estava muito nervosa quase a gritar com ele… a sério, só mesmo aquele panhonha do Marcelo para aguentá-la com todo aquele mau feitio…
- Bem, ela tem um feitiozinho… vai lá vai… tanto ela como a irmã, a gorda das camisolas largas… que par de amostras…
- Ouvi dizer que o Marcelo já deu umas facadinhas por fora…
Gracinda sabia mais do que apenas “ter ouvido dizer”. Sabia que Vânia tinha estado com Marcelo, tinha sido a própria cunhada do Marcelo, a irmã gorda da prima da outra, a revelar-lhe – jurou que viu Marcelo a sair do prédio dela. E as gordas não mentem. Vânia tinha sido muito permissiva numa casualidade quotidiana – deixara que Marcelo carregasse as suas compras até casa, após deixar cair o saco das conservas mesmo aos pés dele. Deixou que ele entrasse. Depois fechou a porta. Alguma coisa se passara, o ar de Marcelo transformou-se a partir daquele momento. Gracinda sabia que Vânia iria acusar o remoque. Já com o pé esquerdo pintado e quase seco, Gracinda fecha o frasco do verniz e lança um olhar penetrante para Vânia, que se debate com o 3º dedo do pé direito.
- Bem capaz disso é ele!
Gracinda sorri de forma amarela. Vânia não se descoseu. Mas a forma como ela não levantou os olhos do seu pé e como percorreu o pincel do verniz recorrentemente sobre a mesma unha, aplicando-lhe sobrecamadas desnecessárias, esclareceu implicitamente Gracinda. O tom ríspido da resposta, o desinteresse fictício e teatral de Vânia também ajudou. E a Gracinda bastavam-lhe estas pequenas sensações, ligeiras pistas, discretos detalhes, para confirmar as suas suspeitas. Todos os detectives deviam ser mulheres. Gracinda insistiu, num sádico prazer que afligia Vânia, desesperada por não ter mais que cinco dedos por pé aos quais se dedicar:
- Ele está muito bem conservado para a idade, trata-se bem… e dizem que tem muito dinheiro…
- Dizem que sim… Passas-me os algodões?
Vânia não estava a gostar do rumo das coisas. Pressentia que Gracinda sabia algo e que a iria espremer para revelar coisas proibidas. Quem lhe mandou falar na prima da outra? Era dessa personagem que Vânia queria saber coisas, de forma a acicatar Marcelo numa eventualidade futura. Do Marcelo sabia ela bem. Erro primário número um: nunca se refere directamente aquilo que se quer, deixamos que as outras suponham. Mas Gracinda não queria afastar-se de Vânia, podia ser-lhe útil no futuro. Vânia não seria uma amiga a 100%, mas como inimiga é que não. Havia que inflectir a direcção da conversa e deixar os seus prazeres inquisitórios para outra ocasião.
- Toma lá… os algodões estão caros, não achas?
- Caros é a favor! Estão caríssimos!
- Tens mais alguns que me possas emprestar?
- Estás com sorte porque apanhei umas dúzias em promoção.
- Fantástico!
- Está tudo tão caro hoje em dia…
- Se está… com 100 euros já não consigo ir ao cabeleireiro e depilação e depois passar pelo Shopping W e comprar uma mala decente… custa tudo os olhos da cara!
- Eu comprei estes sapatos abertos anteontem. Combinam mesmo bem com a cor do verniz.
- Ai, que sapatos lindos! São tão giiiiiiiiiiiiros!!!
- Obrigada!
Estava tudo bem. Os sapatos são muito feios e não valem nem metade do seu exorbitante valor. Não há crise, apesar dos preços altos dos mecanismos cosméticos a que usualmente recorrem, porque os cartões de crédito continuam com plafonds aceitáveis. Para que servem os homens, afinal? Esses parvos podem achar que são imprescindíveis e insubstituíveis, mas no fundo são um mero troféu social da mulher. Da verdadeira Mulher Moderna. Com M’s maiúsculos.
E nada melhor que uma discussão sobre preços e moda para desviar as atenções.
Depois disto, um desconfortável silêncio. Os pés estavam finalmente pintados. As unhas dos pés pintam-se por vaidade, numa primeira fase; e por necessidade, numa segunda fase, onde não ter as unhas pintadas significa estar fora de moda. Pintam-se com cores fortes, que as cores fracas são da moda passada. Pintam-se com o instinto, em pinceladas mais ou menos rápidas, enquanto pela cabeça percorrem pensamentos e críticas várias a outras mulheres. Para fora, contudo, transparece uma imagem de harmonia e normalidade. Tudo é demasiadamente bom, nada é definitivamente mau. Porém, a realidade é quase sempre contrária. Segundo Gracinda e Vânia:
- Estão adoráveis!
- Adoro a tua cor.
- A tua também é espectacular.
Mas faltavam mais palavras. Gracinda aguardava ainda por uma cedência de Vânia. Vânia palpitava com um mistério que ansiava revelar, mesmo sabendo que não devia. A tentação provou-se irresistível.
- Admito, dormi com o Marcelo.
- Ahh! Não acredito!
Não havia surpresa. Antes uma satisfação camuflada, um palpite intimamente confirmado. Gracinda rejubilou com a sua vitória. Ansiava pela descrição que Vânia não podia recusar oferecer.
- Foi muito fácil. Ele estava a desejar outra mulher. Notava-se isso de longe. Foi só encostar-lhe a mão ao peito.
- E foi mesmo…
- Até ao fim.
- Até ao fim?
- Fizemos tudo.
- Tudo? Tudo mesmo?
- Não… Apenas tudo daquilo que é normal, evidentemente.
- E onde…
- No sofá da sala. Logo ali.
- E como…
- Fomos rápidos e disfarcei bem. O Marcelo adorou. O meu marido não deu por nada.
- Ahhh…
- Prometes que não contas isto a ninguém?
- É claro que sim. Nem precisavas de dizer… Sortuda!
Vânia sabia que o seu segredo estaria a salvo por pouco tempo, talvez o tempo suficiente para arranjar um contra-segredo de Gracinda ou para arranjar um álibi esclarecedor. Mas tinha recrudescido a sua fama de “femme fatale”, alargado a sua aura de “men eater” a níveis nunca dantes vistos – o ganho de prestígio instantâneo e de inveja dissimulada das outras mulheres amparava a aparente fraqueza de ter revelado algo de sigiloso da sua vida. Gracinda, por seu turno, tinha obtido um trunfo que poderia ser-lhe vital de futuro, pese embora a sua raiva interior por ter sido Vânia a felizarda e não ela mesmo, que emagrecera 2 quilos nos últimos meses e julgava-se mais apetecível do que nunca. Para além disso, muito importante, tinha agora um tema de conversa que iria despertar atenções nos cochichos surdos dos salões de beleza.
Novamente, um silêncio incómodo povoou o espaço destas pedicuras amadoras. Tinha sido proveitosa a sessão. Um segredo contado, um segredo sabido, eis como todas as partes ganham no eterno dilema do prisioneiro feminino. Além do mais, os pés pareciam óptimos, como que rejuvenescidos.
- E que me dizes da viagem da Verónica às Seychelles?
- Uma pindérica, essa mulher. Pediu crédito rápido para pagar a viagem. Não tem onde cair morta.
- E o marido dela?
- Um falido. Perdeu tudo num negócio de restauração.
- E o que eles percebem disso?
- Nada. Toda a gente faz de conta que percebe… e depois há alguns que se lixam.
- Detesto gente que se faz passar por aquilo que não é.
- Eu também. Hipocrisia não rima com a minha personalidade.
- Nem com a minha.

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