quarta-feira, outubro 24, 2007

Surrealizar Por Aí

Portugal inteiro aguardava com expectativa por João Loureiro. A demissão do cargo máximo do Boavista foi um mero pretexto para uma conversa com a fleumática Ana Lourenço na SIC Notícias. O que todos nós, até a férrea Lourenço, queríamos saber, em jeito de quem não quer a coisa, de desdenhar e querer comprar, era se João Loureiro iria reformar os Ban. E ele, remetendo, enfim, o xadrez da avenida para segundo plano na fase final das suas justificações para a sua não continuidade enquanto presidente da colectividade, lá admitiu que sim, que seria possível, ele que até tem mantido encontros recentes com ex-membros da banda. O clímax fora atingido, no seu íntimo Ana Lourenço deve ter suspirado de alívio.
Com isto, Lourenço salvou a entrevista, acalmou Loureiro e dissipou as dúvidas que pairavam sobre a permanência de Loureiro em estúdio, temido que foi, por momentos, o remake da badalada dispersão de Santana perante a mesma Lourenço dos lábios pintados em tons muito escuros. E, mais importante que tudo isto, relançou a carreira dos Ban, ao não negar a especulação da sua reunião. Portugal estremeceu.
É compreensível este frenesim de sensações que invadiu os lares dos portugueses com televisão por cabo. É que, afinal, os Ban foram uma grande banda pop dos anos 80. E com isto, acabei de perder a consideração dos pouquíssimos pobres diabos que teimavam em acompanhar este blogue.
Talvez o que se reteve na mente das pessoas tenha sido o aspecto tremendamente yuppie de Loureiro, o filho do major, menino-bem do Norte com o curso de Direito, a abanar as ancas tapadas por umas calças subidas até à parte superior do tórax, acomodando a poupa proeminente ao sabor do vento, agarrado ao microfone debitando palavras elaboradas com a sua voz Ban(al). Além do mais, toda a banda partilhava os mesmos gostos de moda, o que incluía um baixo subido até ao pescoço ou as horríveis guitarras sem cabeça. Tudo bem, é de facto uma imagem cenicamente forte e inapelavelmente kitsch, mas não se esqueçam que estávamos nos anos 80 – e se criticamos os Ban pela imagem, certamente que temos de criticar todo o visual da maioria das bandas dessa época.
E é neste contexto visual aparvalhado da altura que os Ban devem ser inseridos. Estilisticamente não tão ousados como as bandas hair-metal ou os inenarráveis Flock of Seagulls, por exemplo, mas musicalmente enquadrados na vanguarda do som pop da altura. OK, especialmente em Portugal. O primeiro álbum da banda, “Surrealizar”, surgiu em 1988. Nesse ano já se antevia uma inflexão do paradigma musical: do lado de lá do atlântico, os Sonic Youth editaram “Daydream Nation”, um ambicioso álbum de noise-rock, os Pixies reuniram-se com Steve Albini para “Surfer Rosa”, um ano depois de “Come On Pilgrim”, e os então seminais Nirvana gravaram a sua primeira demo-tape em Seattle; no Reino Unido, mais contido na revolução, Manchester começava a dar cartas, com os Stone Roses. E por cá, a pop ainda vivia o seu período de fulgor. Depois, os Ban lançariam “Música Concreta”, em 1989, e deram por findas as suas actividades com “Mundo de Aventuras”, em 1991 – e aqui começava a morrer o admirável pop português, começando a cedência às guitarras mais rasgadas e às batidas mais roqueiras que davam cartas pelo mundo. O pop português vindouro, em termos genéricos, jamais conseguiu aproximar-se da magistralidade dos grandes momentos dos Ban e sempre pareceu mais forçado do que inspirado, de forma a receber o precioso tempo de antena.
Os Ban podem ter demorado a aparecer (pois já existiam desde 1983, então ainda sob o nome Bananas (!), praticando algo muito mais escuro e semelhante aos Joy Division – diz quem os ouviu nessa fase), mas apareceram em força. Havia uma espécie de guerra-fria com os conterrâneos GNR para saber qual deles ocuparia o trono da pop portuguesa. E se é certo que os GNR atingiram o reconhecimento mais cedo e durariam muito mais tempo (até hoje), os Ban quase sempre se revelaram mais acessíveis, sem nunca terem enchido Alvalade e sem serem tão provocatórios. Músicas orelhudas para passar na rádio era com eles. Nunca agradaram a facções mais radicais, mas estou certo que cativaram muitos adolescentes, pré-adolescentes e gente de idade mais adulta fascinada pela pop inócua, pela bolsa de Nova Iorque e fã do pezinho de dança com o copo de ginger ale na mão – sim, música yuppie, era isso que queria dizer. Era um estilo respeitável na época.
É deles A música pop portuguesa dos anos 80. “Irreal Social” é grande, com a sua batida seca, uns pingos de saxofone, uma guitarra à la The Edge, o dueto formidável de João Loureiro e Ana Deus e a letra memorável. Ainda comparando com os GNR, se estes tiveram letras lapidares como “ser mãe é a aspiração natural de todo o homem moderno”, “faz-me impressão o trabalho, a inércia faz-me mal”, “era só para brincar ao cinema negro, os corpos no lago eram de gente no desemprego” ou toda a letra de “Ana Lee”, os Ban respondiam com frases curtas como “dá-me um ideal, um imaginário”, “não me dês moral” e o soberbo “surrealizar por aí” – simplesmente delicioso. “Irreal Social” foi o expoente máximo conhecido de rebeldia do menino João Loureiro e é uma música que deve perpassar gerações e ser imortalizada. Se há algo de positivo na pop dos anos oitenta, “Irreal Social” é o exemplo acabado. Sem reservas.

Mas não se pense que os Ban foram “one-hit-wonders”. Não; aliás, uma audição do seu “best-of” (“Num Filme Sempre Pop”, 1994) revela mais gemas pop às quais o tempo não atribuiu a merecida relevância. Descontando “Mundo de Aventuras”, a canção homónima do álbum que foi o último assomo criativo da banda, tendo inclusivamente feito parte do alinhamento daquelas compilações “Nº1” que saíam no final de cada ano sob o patrocínio do Fido da Seven-Up e que talvez tenha tido algum destaque (no clip, Loureiro na fase George Michael pós-Faith exibe a barba por fazer, os óculos escuros e o troco nu), algumas outras geniais criações ficaram apenas na memória de poucos. Cito as mais imperdíveis: “Dias Atlânticos”, uma balada doce do fim de uma tarde de Verão (“revisitei mais desenhos animados”, outra frase forte); “Rosa, Flor”, que bem podia ter tido mais tempo de antena na rádio com o seu je-ne-sais-quois de Smiths; “Excesso, Aqui”, outra vez a vírgula no título duma faixa mais sombria e erótica (uau!), bem apimentada por teclados ambientais e ritmo afunkalhado; “Suave”, tal como o nome indica, com Loureiro sibilando as palavras com o apoio do “uuuuh-uuuh” de Ana Deus; “Pá-Rá-Rá”, título visionário para a canção “Hmmm-mmmm-mmmm” dos Crash Test Dummies, música igualmente saturada de pop por todo o lado, com harmónica e tudo; e “Num Filme Sempre POP”, o épico, se assim podemos dizer, dos Ban, que encerra o “best-of” e sintetiza o espírito da banda. Uma mão-cheia de grande música pop.
Sobre a eventual reforma dos Ban, tenho sentimentos contraditórios a exprimir: se, por um lado, é perfeitamente legítimo que João Loureiro queira regressar para tentar dar aos Ban a importância histórica que eles merecem realmente ter no plano da música pop portuguesa (e cantada em português), por outro lado o mundo em que os Ban cresceram é hoje uma imagem distante, uma fotografia amarelecida pelo tempo e que levanta risota aos descontextualizados. Seria, a meu ver, trágico que João Loureiro se lançasse na gravação de um novo álbum e estragasse o que de bom fez no passado – quer fazendo música dos anos 80 vinte anos depois, quer adaptando os Ban à cartilha do século XXI, sendo qualquer uma das hipóteses francamente sofríveis. Aliás, talvez até seja provável que Loureiro não consiga reunir toda a banda – e Ana Deus também seria insubstituível (nota: Ana Deus, que posteriormente integrou os Três Tristes Tigres com Alexandre Soares, ex-GNR do tempo de “Dunas”, ou como o panorama musical português se resume a meia dúzia de personalidades e bandas com formações muito promíscuas).
Para mim, o veredicto certo será Loureiro reunir a banda para uma digressão de celebração da sua música, deliciosa para os nostálgicos, e lançar um álbum ao vivo. E se ele quiser continuar na música com novos sons, que não toque nos Ban – lembro que ele também integrou os Zero e estes também tiveram um excelente single, “Tudo ou Nada” (nota: dos Zero fazia parte… Alexandre Soares).
Enquanto Jaime Pacheco vai aguentando aquela manta de retalhos que é a equipa do Boavista e João Loureiro, o filho do major, pergunta aos filhos se deverá escolher regressar à advocacia activa ou aos palcos (sendo que a recandidatura parece estar definitivamente afastada), surrealizemos por aí.

«(acabamos) por motivos diversos. Uns elementos tinham outras opções de vida e, talvez, algum cansaço. Depois de os "Ban" terem acabado, lancei o disco dos "Zero". Entretanto saiu uma colectânea dos "Ban" e fizemos ainda uma digressão final que serviu para colocar uma pedra final no agrupamento. Por outro lado, na música, como em tudo na vida, é necessário saber parar. Eu prefiro que os "Ban" sejam vistos, e o próprios "Zero", como marcos fundamentais na música moderna portuguesa e serem relembrado com saudade, do que se continuar a fazer coisas sem prazer, com resultados piores.» João Loureiro, http://anos80.no.sapo.pt/ban.htm

1 comentário:

Angelus disse...

E que bela loiça, Sr. Rodrigues! Isto é, se me perdoar a inadvertida troca da letra u pela letra i em palavras como loiça. Com os melhores cumprimentos, Angelus