segunda-feira, outubro 30, 2006

A Tatiana Fez Uma Tatuagem

- Tatiana, o que é que isso representa?
- É fixe, não é? Isso representa muito para mim.

Uma história feita de pontos altos muito baixos. Sobrevivendo na penumbra, perdida entre a multidão que deambula pela cidade. Sonhando com dias de fulgor embrenhada nas profundezas da estação de metropolitano mais decrépita. Sorvendo o pó do cimento como substituto do pó das estrelas. Um cigarro aceso com um isqueiro Bic. Tatiana, eras mediana.
Olhavas para os cartazes que pululavam pelos passeios com aversão. Porque eram sinais do capitalismo selvagem que contestavas e porque podias perfeitamente encarnar a personagem, fazendo melhor figura. Sim, possuías uma beleza inata, segundo a tua perspectiva. Sim, eras de esquerda. Escrevias à esquerda, andavas à esquerda pela escada rolante, os teus amigos diziam que a “esquerda vencerá” e os gajos do Bloco são pessoas “altamente”, sempre prontas a fumar uma ganza contigo. A direita é para os “betos”, para os gordos que conduzem o 4x4 na avenida e que comem nas assassinas cadeias de fast-food. Eras de esquerda porque sim. Eras de esquerda porque tinhas de ser, se querias estar na moda. Só a esquerda é jovem, só a esquerda tem piada. Tu eras jovem e cheia de piada, mas a tua vida não tinha luminosidade. Eras uma árvore de Natal viçosa e esbelta mas sem enfeitos. Uma foice resplandecente sem martelo, uma MTV sem hip-hop.

- O que vem a seguir?
- Quero fazer uma outra no pescoço, aqui atrás, com o nome do meu sobrinho.
- Já sabes como ele se vai chamar?
- Deve ser Tadeu. O que importa é que tenha tudo pronto para mostrá-la na manif contra a tourada do próximo mês.
- Altamente. Os touros sabem ler?
- Acho que não. Mas sentem as vibrações positivas.

Como elevar a tua personalidade acima do lodo onde te acomodavas? Havia que pôr cobro à pasmaceira. A monotonia do mundo é quebrada diariamente com espectáculos de malabarismo na Baixa, com músicas étnicas debitadas a alto no som no quarto do teu T3 na nova urbanização, ritmos sacados da Internet rápida que o teu pai instalou lá para casa. Fazias o possível para mudar o mundo. Mas ainda faltava revolucionar-te a ti própria, Tatiana. Não a nível do pensamento, já que esse está sintonizado com o que de melhor existe na tua sociedade de jovens – eras consciente, vegetariana, anti-globalização e os teus amigos estão sempre no topo das prioridades. Decidiste que o teu visual não estava adaptado às novas exigências. Não te respeitavam sem um aspecto que não chocasse. A tua mentalidade de desafio requeria um corpo aberto ao manifesto. A Branca de Neve não era apelidada como tal se fosse uma preta do Uganda – e tu não serias a mais radical jovem do teu bairro se continuasses a ter um aspecto tão trivial.

- Eu acho o máximo teres os braços e as pernas cobertas de tatuagens, mas…
- … e as costas, também. Não te esqueças que tenho um sol, um cavalo e um desenho tribal nas costas.
- … e as costas, mas eu não era capaz, falta-me coragem.
- O que custa é a primeira. Depois elas fazem parte de ti, marcam-te para a vida. Não me vejo sem tatuagens hoje em dia. Quero encher-me delas!

Não estavas a acompanhar a evolução. Tinhas uma sacola a tiracolo com o símbolo da Cannabis, roupas largas, bombazine e buraquinhos na roupa. Cabelo desgrenhado e ténis sujos. Preenchias os requisitos da moda, com um senão: na praia, por exemplo, serias totalmente vulgar, igual a uma adolescente da telenovela. Isso era extremamente gravoso para a tua imagem, para a tua cabeça, Tatiana. Remoías-te por dentro, bolas!, eu não sou assim, isto é uma vergonha!, até os meus pais podiam gostar de mim! Fizeste uma tatuagem, como se desses um passo mais além. Escolheste algo do catálogo. Ainda com o receio do passo mais além ser para lá do abismo, perguntaste a medo:
- Essa tatuagem já foi feita a alguém?
- Não, não, eu garanto que não; tenho mais de 1500 desenhos em catálogo, era preciso muito azar.
Individualidade, Tatiana, individualidade. Um bem precioso. Tens de ser diferente dos demais, mantendo-te englobável no teu grupo. Depois daquela tatuagem começaste a cheirar um odor diferente na atmosfera - era o perfume da vaidosa superioridade estética. Elevaste-te acima dos demais. Ganhaste centímetros com o orgulho que aquela tatuagem fez parir dentro de ti. Tinhas de fazer mais, ser maior. Uma e outra mais, o corpo manchou-se de desenhos, caracteres esotéricos, riscos de diferentes cores e feitios. Tatiana, és um placard publicitário andante. Publicitas a tua mentalidade arrojada. Manténs os fantasmas da banalidade longe da tua vista e as vistas concentradas em ti. Afastaste-te da indiferença.

- Tatiana, gostava de ser como tu.
- Obrigada! Mas podes ser tu mesma, mesmo sem tatuagens. Cada um tem o seu espaço.

És magnânima, Tatiana. Sabes bem que és maior que todos os teus iguais, que mesmo que alcancem o seu espaço ficarão num plano de inferioridade perante a tua rebeldia fotogénica. Foste a primeira, tiveste a ideia, adquiriste o exclusivo. Neste jogo de aparências ganhaste este nível. Com as tatuagens ganhaste atenção, com a atenção ganhaste respeito dos teus pares. Pressentes que o teu corpo é demasiado pequeno para a tua ilimitada mente. Uma mente progressista, atenta às desigualdades do mundo, combativa, solidária para com os desfavorecidos, sempre em evolução. Ao mesmo tempo, uma mente que necessita dum aspecto distinto para ser.
PS: O álbum dos Rolling Stones foi escolhido pelo seu título ("Tattoo You") para ilustrar este post. Não existiu mais nenhum critério para esta escolha. O álbum em si contém "Start Me Up", uma das melhores faixas de sempre de Jagger/ Richards.

1 comentário:

. disse...

As tatuagens mais interessantes são aquelas com uma função utilitária, como no Memento: «O que é que esse arabesco no teu pescoço significa? Significa que tenho de comprar leite ainda hoje» ou «Qual é o nº seg. social? Está aqui no meu ombro, em chinês.» A capa dos Rolling Stones é muito boa...