quinta-feira, outubro 19, 2006

O Trompetista

Este era o seu mundo. O seu pequeno mundo, aquele quarto. Meros 12 metros quadrados. Pequeno quarto e o mundo inteiro lá dentro. Lá dentro estava o computador, a televisão e uma cama, mais um armário que servia para guardar roupa e víveres. Um armário-arrecadação-despensa. Não precisava de mais nada, o Samuel.
De dia, trabalhava na câmara municipal, como almeida, varrendo ruas e becos. A sua cabeça nunca esteve lá, só os bolsos. Não espanta. Não é comum alguém idolatrar o lixo. Muito menos o lixo dos outros.
Ele adora o seu quarto. Faz-lhe lembrar a cela onde estivera preso por tráfico de estupefacientes, só que sem o aspecto pavoroso e com luxos, como a internet, que era basicamente para o que ele trabalhava.
O problema é que ele também injectara estupefacientes. Havia uma coisa que ele não conseguia perder, por maior que fosse o esforço para largá-la – a tendência para a adicção, que permanecia intacta.
Samuel queria chutar-se com o que lhe viesse à mão. Algo que o ocupasse, que o entretesse. Ele é um obstinado pelo vício, nunca perdeu o vício. Quanto muito, perdia um vício hoje para ganhar outro amanhã. O seu amado quarto era um vício, Samuel não podia chegar às dez horas da noite sem estar lá ou tremores e suores invadiam-lhe a mente e o corpo, sensações de pânico afligiam-lhe os sentidos. Por ser o seu refúgio, onde ninguém o incomodava e onde a anarquia reinante era água onde ele, Samuel, qual peixe, nadava feliz sem perturbações.
A heroína ficara lá para trás. Foi-se. Levou com ela anos de vida, alguns dentes e a qualidade dermatológica de Samuel. Ela foi mais que uma companheira assídua da sua vida, foi um desafio, exigia sempre mais e mais. Agora tinha ido embora. Mas parecia ainda espreitar em cada esquina, assobiar em cada canto, Samuel receava olhar para trás e vê-la sorrir em tentação. Tinha de se chutar com qualquer outra coisa que fosse desafiante.
Não se pense, contudo, que ele possui um carácter marcadamente ambicioso, sempre à procura de obstáculos por ultrapassar. Não, a sua ambição é uma não-ambição, é o não querer ser. Samuel exercia uma contra-força que se movimentava na razão proporcional e contrária à força da qual queria fugir. Se a heroína era um íman, ele buscava o anti-íman. O substituto mais próximo de agora era a internet.
Antes fora a bebida. Mas não lhe fez bem. Procurou a literatura, mas aborrecia-lhe. Experimentou o jogo, mas a batota minou-lhe a atracção. Viu televisão e cinema e, realmente, foi um bom escape. Tornou-se um ás no cinema de acção, assistiu a tudo o que era Van Damme, Chuck Norris e Bruce Lee. Sobrepôs a este vício o gosto pela música, que ultrapassou o carácter de vício para assumir a forma de paixão infinita. Nem Samuel sabia que tanta e tão boa música se fazia e se fizera por aí. Com a internet, satisfazia as mais pequenas curiosidades, sacava filmes, séries, bandas-sonoras e compilações. Com isto é que ele se tinha chutado recentemente.
Ele gostava de futebol. Também se divertia com ele. Houve um dia em que reparou que futebol e música se podiam conjugar numa entidade só, uma simbiose de alegria e humanidade: foi quando ouviu o trompetista das Antas.
Existiam os corneteiros apoiantes da selecção holandesa, também eles bem dispostos. Mas aquele trompetista, saído do Conservatório directamente para as frias bancadas das Antas ou para o pavilhão Américo de Sá, é que lhe despertava as atenções. O trompetista embalava os adeptos e a própria equipa da casa. Samuel ouviu trechos de “Yellow Submarine”, dos Beatles; música clássica e música popular. Apreciou a peculiaridade deste homem, que preferia soprar no seu trompete a assistir o espectáculo convenientemente. Este trompetista era um espectáculo dentro do espectáculo. “Tá-tá-tá Tátátárárá Tá-tá-tá Tátátárárá”, ecoava pelas bancadas.
Samuel via no trompetista uma pessoa como ele, teimosa, disposta a levar os seus vícios particulares avante, neste caso, o trompete e o desporto, sem reservas, deixando-os comandar as suas acções. Admirava-o. Julgava que ele vivia para apoiar a equipa de trompete, tal como Samuel vivia para satisfazer os seus pequenos prazeres na caminhada para fora da droga. Todos os jogos lá estava ele, trompeteando o seu reportório não muito alargado. Numa noite, instalado no seu quarto, deixou a internet de lado e pensou apenas em ver o jogo. A obsessão pelo trompetista, seu irmão de mentalidade e ídolo, abraçou-o com força.
A surpresa foi enorme. O estádio já era outro, novo, o trompetista não se ouvia. Um sentimento de desilusão percorreu-lhe a espinha. Outro e outro jogo passaram e nada de acordes musicais no estádio. Ouviu-o apenas esporadicamente e sem a verve anterior num ou noutro jogo. Samuel perdeu um irmão. Percebeu que o trompetista cumprira um ciclo da sua vida, outras coisas mais importantes se teriam levantado. Será que haveria mais alguém que fizesse dos seus vícios belas expressões de arte contínuas capazes de fascinar como aquele trompetista? A única coisa que Samuel sabia é que o trompetista tinha cessado o seu vício mas que ele próprio sentia os seus intactos. Voltou para a internet.
Felizmente, a internet tem tudo. Conseguiu arranjar a música da claque com cânticos e uma música de trompete. Colou uma por cima do outra e conseguiu uma cópia quase fiel do velho trompetista que tantas afinidades partilhara consigo. Pronto, o som não era exactamente o mesmo, mas Samuel reconfortava-se suficientemente com aquelas memórias.
Toca esse arranjo no seu quarto. Vendo a internet e deixando ligada a televisão. Samuel acumula vícios por cima de vícios num ritmo frenético. O ritmo frenético com que se dedica fá-lo sentir relaxado e realizado. Aliviado. O mundo que é o seu quarto ia crescendo, sem nunca se mexer fisicamente. Agora com o som do trompete que um dia também passou a ser seu. Talvez para sempre.

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