quarta-feira, outubro 18, 2006

Os Transportes Públicos: A Problemática da Idade

É matemático: num transporte público qualquer encontramos sempre um ou outro idoso. Em qualquer dia e praticamente a qualquer hora. Principalmente à hora de ponta.
Partamos à análise deste grupo social que preenche com fervor os seus novos santuários que são os interfaces de transportes públicos.
Andamos nós carregados de pastas e papéis a tentar arranjar espaço para, ao menos, segurarmo-nos bem, e o máximo que conseguimos é um lugar recatado junto à saída. Haverá um ancião qualquer que se aproximará, com folgada distância espacio-temporal da próxima paragem, e nos vai interrogar, de uma forma mais ou menos cândida, com mãos mais ou menos tremelicantes: “Vai sair na próxima”?
Que respostas esperam estes animais (não no sentido literal) dos transportes públicos? “Sim” ou “Não”.
Se for “Sim”, irão colar-se a nós (num sentido já mais literal), esperando com alguma impaciência que chegue a paragem. O objectivo que perseguem, e que jamais revelam, é o estar apoiado na porta, assumindo a pole-position para saírem – julgamos que por sentirem o pânico, fundado, de não conseguirem ser lestos o suficiente para percorrer o caminho desde que se levantam do seu assento até saírem pela porta. Ou, receio dos receios, verem as portas fecharem-se à frente e terem de sair na próxima paragem, para depois apanharem o transporte no sentido inverso e fazerem mais uma paragem.
Se for “Não” estamos tramados. O olhar dos velhos torna-se inquisitório e eles não terão pejo em questionar a nossa posição privilegiada junto da saída. Exibem os galões da sua idade. Exigem respeito da juventude. Mesmo se não tivermos opção, temos de obter uma. Rapidamente. É o mínimo que um jovem atrapalhado com as suas cargas tem de fazer para satisfazer o idoso doente que apanha o transporte público para esperar nos bancos dum posto clínico qualquer ou, na pior das hipóteses, simplesmente espairecer.
Os velhos gostam de espairecer. Gostam de passear. Para esquecer maleitas várias. E por isso andam de transportes públicos, aproveitando o facto de existirem passes sociais a preços convidativos, mesmo com as reformas actuais. Os casos mais graves de isolamento requerem uma boa dose de calor humano. E os velhos nesta situação povoam com uma devoção quase diária os nossos transportes públicos nas horas críticas. Muitos dirão que eles atrapalham a marcha normal de quem se sente atrasado para chegar ao emprego. Não é verdade, só pessoas injustas poderão dizer isso. Na verdade, eles são mais que simples empecilhos – são pragas.
Como todas as pragas, possuem um objecto de fixação: os bancos. Aliás, estamos em crer que se não fosse para refastelarem as suas nádegas num bom banquinho usado e gasto nem se dariam à chatice de apanharem um transporte. Esta obsessão inicia-se logo na paragem: os lugares sentados de espera são deles. Se não forem, sê-lo-ão através dum pedido simples (“Posso sentar-me?”). Porém, na maior parte dos casos, basta arrastarem-se suficientemente lentos, de cabeça baixa, exalando com dificuldade, na direcção do banco – provocando a pessoa que lá está a ceder-lhe o seu lugar, sob pena de ser rotulada instantaneamente pelos restantes que estão de pé e pelo próprio idoso de “jovem sem respeito pelos demais”. Amiúde também se pode escutar “o mundo está perdido; a juventude de hoje não tem futuro”.
Uma vez instalados nos bancos já dentro do transporte, inicia-se uma guerra psicológica. E aqui os velhos demonstram muita frescura física e mental. É que o banco onde eles se sentam pela primeira vez naquele transporte nunca é o melhor – ou porque vai sentado de costas relativamente à direcção que o transporte leva, ou porque está muito longe da saída, ou porque tem um guineense mal-cheiroso ao lado. Portanto, é necessário obter um banco melhor. Quando as pessoas se levantam do seu lugar para sair eles actuam: eles já conhecem as caras de todas as pessoas que apanham aquele transporte àquela hora e por isso fixam os movimentos das pessoas; pensam para si “aquele vai sair; tenho de ir para o sítio onde ele está”; e, com uma agilidade que desconhecíamos, erguem-se e já lá estão, prontos a tomar o lugar da pessoa cessante. Essa pessoa, não raras vezes, até tem dificuldades em sair, tal a marcação dos velhos, que, obviamente, não se preocupam com mais nada a não ser no melhor sítio para aconchegar o rabo. Nem sequer na pessoa que já estava há 45 minutos de pé à espera duma oportunidade - pois a prioridade é um exclusivo deles, em qualquer altura. Todos já presenciámos situações onde os velhos trocam 4 ou 5 vezes de lugar (sentado) por viagem, enquanto nós esperamos essa mesma viagem invariavelmente no mesmo lugar (de pé).
E o bom ambiente que estes idosos proporcionam durante o trajecto? Graças a eles, ficamos vacinados contra praticamente todo o tipo de suspiros, queixas, comichões, tosses e gemidos. E conhecemos as histórias dos seus filhos, dos seus netos, dos seus vizinhos, de bizarras enfermidades, de médicos esplêndidos e doutros que nem por isso. Com as mais mexidas aprendemos igualmente a gentil técnica do tricot. Com os velhos sabemos o quão rançosa poderá ser uma boina que oculta a calva ou a quantidade de muco viscoso que pode ser segregado pelo organismo. Tudo lhes é permitido. Porque são velhos e todo o respeito é pouco.
O objectivo desta prosa é mesmo para sublinhar este último conceito: respeito. Muitos destes velhos não admitem que um jovem, se calhar com coisas bem mais importantes a tratar e claramente mais atrasado, lhes passe à frente. Não estão dispostos a facilitar; nesta idade, todos têm de lhes conceder essas facilidades. Vimos que praticamente toda a gente os atura, que lhes cede o lugar, que lhes dá passagem. Mas se há alguém que fura estes ditâmes, então os velhos disparam contra tudo e todos. Para os velhos, o civismo tem apenas um sentido: para eles, nunca deles. Como foi dito atrás, os velhos não perdoam. Generalizam para todo um país a infelicidade de um gesto menos próprio para com eles. Eles são os agentes mais egoistas e arrogantes do nosso sistema de transportes públicos, não conseguindo disfarçar este facto com aqueles olhares arrastados e passos trôpegos. Esta é a triste realidade – ou conservam alguma independência para andarem nos transportes públicos, mas são assim, insuportáveis; ou vão para o lar e definham vegetativamente, sem contudo incomodar muito mais gente que não as assistentes sociais.
É o destino. Qualquer dia seremos assim como eles e não nos queixaremos destas situações, assumi-las-emos como naturais, tal como eles. A história perpetuar-se-á. Um dia seremos nós a rir nos transportes públicos.

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