quarta-feira, outubro 11, 2006

Outros Verões

Ao passear na margem sul, algures entre Almada e o Barreiro, Jeremias repara num muro sujo, na proximidade duma unidade industrial com ares de abandono, visivelmente decrépita. Conseguem-se ainda visualizar uns traços negros que lembram um operário de martelo na mão, como que liderando um pelotão que lhe segue. Tons de amarelo e vermelho gastos bordejam a gravura na parede e subsistem algumas palavras soltas, não consumidas pelo tempo, das quais Jeremias ainda consegue ler “UNIDADE”, “OPERÁRIOS” e “LUTA”. Jeremias detém-se um pouco enquanto Higino, seu neto, sorve um gelado. Olha para o muro de alto a baixo e orgulhoso proclama:
- Fui eu que ajudei a pintar este muro, meu netinho. Já lá vão mais de 30 anos.

Higino dá ares de preocupação no intervalo. Gustavo, seu amigo, entretém-se com uma consola portátil.
- Tenho um problema, Gustavo.
- Hã? Espera aí, deixa-me marcar este livre…
Gustavo aplica-se, move o cursor para o canto superior da baliza, remata em jeito… mas a bola sai por cima da barra, com o guarda-redes em voo aparentando ter o lance controlado.
- Ahhhhhhh!!! Tenho de marcar mais para baixo… diz lá, meu, o que se passa?
- O problema não é comigo, é com o meu avô.
- Ah, o velho que te traz à escola todos os dias… O que é que ele tem?
- Ele diz que foi comunista.
Gustavo retira os olhos da consola. Encara Higino com alguma perplexidade.
- Eh, pá, estás lixado. Quando uma pessoa apanha isso, já não tem cura.
- Não digas isso! – insurge-se Higino, disposto a não aceitar tal negativismo.
- Olha, o meu avô disse que esses “comodistas” não vão a lado nenhum, só querem é roubar o dinheiro dos outros e já não existem…
- Eh, pá, está bem, não é bom… mas também não deve ser assim tão mau…
- Se eu estivesse no teu lugar, dizia para o teu avô ir a correr ao médico.
- Achas que sim? Ele nem parece muito mal…
- … e diz-lhe para sair das correntes de ar.
- Eh pá, estou lixado! – admite Higino – Agora quem é que me vai trazer à escola e comprar-me chupas?

Não, Jeremias não é nostálgico nem sentimentalão. Procura racionalidade nos seus actos. Mais importante, procura racionalidade no comportamento do mundo.
Em 1975, o Verão foi mesmo quente. Foi mesmo longo. Foi especial. Foi um Verão onde o calor do sol se conjugou com o calor proveniente da explosão da liberdade do Abril do ano anterior. Quando o Verão anterior se despedira, nos finais de Setembro, tinha deixado pistas para o próximo Verão, antevendo que se iriam atingir temperaturas tórridas. Esses indícios confirmaram-se na Primavera e logo em Março se deu início à época balnear. As eleições de Abril agitaram os ânimos de tal forma que o Verão só findou em Novembro. Acabou no Monsanto esse Verão. E a partir daí, parece que vivíamos oscilando entre a Primavera e o Outono, desprovidos dos calores dum Verão que se quer mesmo quente. Mas devia ser a Jeremias que faltava poder de adaptação às circunstâncias. O mundo parecia viver em perfeita normalidade.
Na verdade, é essa normalidade que inquieta Jeremias. Como podem os jovens idealistas viver num mundo tão apático, e simultaneamente tão satisfeito com a sua superioridade tecnológica, como o de hoje?
Dantes, antes desse grande Verão, havia insatisfação. Havia rebeldia juvenil exposta até a um determinado limite que se julgava inultrapassável, como um muro invisível toldador de sonhos. Esse muro rebentara com a pressão dos tempos e das vontades. Jeremias lembra-se o quanto louvou, num sentido figurativo, a evolução voraz do tempo, que tudo consome, até o que sempre julgámos adquirido. E ele, como muitos dos jovens que provariam o viciante gosto da liberdade, deu asas aos excessos. Foi um espírito particular de estrela do rock n’ roll transposto para uma mole de gente considerável, generalizante. A sociedade, no seu conjunto, excedeu-se. Gritou, saltou, confraternizou, reivindicou.
Jeremias recorda-se de uma multiplicidade de questões nascidas de um momento para o outro, questões essas nunca pensadas até então. De uma incerteza diária se o seu emprego ainda estaria lá no dia seguinte. De manifestações quotidianas sobre tudo e mais alguma coisa. De imagens de televisão a preto e branco e com um cariz demasiado sério. Da palavra “revolução” pintada em cada canto e em cada boca. De ataques à bomba contra sedes de partidos clandestinos ou não, nascidos como cogumelos e sem conteúdo mas com muita vontade. Ataques que Jeremias, se
fosse necessário, não teria problemas em perpetrar, se assim o grupo a que pertencia deliberasse.
Havia algo que comandava os instintos do povo. Não sabe se seria o MFA essa sentinela, omnipresente no topo do mundo. Duvidava que fosse. O MFA apenas queria apropriar-se dos sonhos dessa gente e acicatá-los de forma a que essa população os julgasse seus líderes. Oportunistas, portanto, gozando do poder institucional que souberam catar. Contudo, deram a cara. Partilhavam as mesmas utopias. Queriam ser irmãos ou pais, mesmo que não gostássemos deles e os achássemos abusivos. Havia alguém que se queria responsabilizar por algo, havia homens a querer educar o povo com um objectivo definido, nem que os meios para alcançar o fim fossem confusos.
Outros valores se foram levantando, entretanto. A personagem do MFA saiu do topo do mundo, disponibilizando o seu lugar. Num ápice o seu filho cresceu, indiferente às lutas à sua volta, alienado pela felicidade dos anos 80. Gorbachev alastrou a sua mancha, o muro caiu, depois a própria Mãe Rússia, nos braços do capitalismo selvagem. Os anos 90 trouxeram alguma indecisão, mas o novo século arrancou com o nascimento prematuro do seu neto, filho do seu filho, por sua vez gerado no olho do furacão e crescido sob o signo da indiferença. O novo século não apresenta dúvidas para ninguém. O novo século é a glória da apatia, o apogeu da imobilidade intelectual. As massas obedecem ao status quo e, qual barquinho sem força, deixam-se arrastar pelas ondas da super-modernidade. A ameaça não é vermelha nem de outra cor qualquer: é abstracta, no limiar da cinematografia fantástica.
Jeremias ao menos anseia pelas dificuldades, pela insurreição que as vicissitudes provocam. Fiel à velha escola historicista, suporta a sua tese com o século XX: a belle-époque dos anos 20 foi fulminada pelo crash de 1929; a estética limpa dos anos 50 desbaratada pela inconsequente rebeldia hippie; a euforia yuppie dos anos 80 beliscada pelas encruzilhadas adoslescentes patentes nos anos 90; e este conformismo grassante deverá, mais tarde ou mais cedo, dar lugar a uma qualquer revolução. Jeremias adora o som desta palavra, “revolução”, fá-lo sentir heróico e com sentido nesta vida.
Ao ouvir a nova sensação musical dos jovens que serão o mundo de amanhã, Jeremias fica a pensar. Conseguiria ele ser tão positivo como o FF? Abriria mão ao saudosismo que pairava sobre si? Não sabe. Mas como ele via o reflexo fútil das novas gerações nesta letra e nesta música…

“E o meu Verão não acabou/ És o Sol que aquece o Outono que chegou/E sei que contigo eu estou bem/E quando estás comigo não há mais ninguém/ E se um dia o Sol deixar de brilhar/ Eu sei que te vou recordar/ Como o Verão que não acabou”.
Naquele Verão que já acabou há uma eternidade, era José Mário Branco e seus pares quem se ouvia, em acordes simples e mensagens politizadas. Está fora de moda. Jeremias, teme, está todo ele fora de moda.

Higino volta-se para Gustavo, no meio de uma aula. Gustavo estava a jogar sorrateiramente na sua consola portátil, não fosse a professora descobrir.
- Ó Gustavo, sabes o que é um “faxista”?
- Um quê?
- Um “faxista”. O meu avô diz que esses é que são maus… por exemplo, nem nos deixavam jogar à bola, se fosse preciso.
- Eh, pá, não… Deve ser o teu avô que está maluco. A minha avó tem um chá que cura tudo. Desde dores de burro até… até “faxista”, ou lá o que é isso.
- A sério?
- Iá, só que o teu avô tem de matar um gato para ter efeito.
- Bolas!... Como é que eu vou dizer isso ao meu avô?
- Sei lá… estou quase a derrotar o mestre japonês!
- Então mas não tinhas o jogo de futebol que a tua mãe te deu anteontem?
- Já estou farto desse… já ganho por 10-0… agora tenho o “Super Fighter XXI”. Espectáculo!
Gustavo aplica um golpe fulminante que faz a consola emitir um som vitorioso. Vitorioso e demasiado alto. A professora mandou ambos calarem-se. Gustavo, inebriado, ignorou e continuou para o próximo nível.

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