sexta-feira, outubro 20, 2006

Os Transportes Públicos: A Glorificação do Condutor

Uma pessoa sem grande valor social, como um ucraniano, brasileiro ou mesmo um português de bigode e careca, passa na rua incólume e sem perturbações, pois o resto da população não os quer ver por perto. São indivíduos incluídos na base da estratificação da nossa sociedade, sendo portanto a evitar, como aliás aprendemos desde o berço. O mais provável é as restantes pessoas desviarem-se do seu caminho, como se o seu simples respirar carregasse alguma epidemia da qual fosse necessário fugir. Quanto muito, estes seres desprezíveis serão alvo de chacota e nunca conseguirão passar à frente de alguém numa fila.
Porém, há uma situação em que estes dejectos sociais são catapultados para a posição de semi-deuses: quando estão ao volante dum transporte público no qual somos passageiros.
Mal entramos no transporte público, entregamos a nossa fé nas mãos do motorista. O motorista, esse, sabe que pode contar com o nosso apoio incondicional. Então os velhos, essa casta analisada alguns posts atrás, prometem até fazer um bolinho para o motorista ou rezar por ele, desenvolvendo laços de proximidade umbilical com o homem do volante – à falta de um contacto palpável com algum santo, viram-se para o motorista, a concretização material dum emissário divino. O condutor do nosso transporte é, por uma graça inorexavelmente concedida, o melhor motorista do mundo: alguém que segue religiosamente os procedimentos de segurança rodoviária, que domina as regras de trânsito como ninguém, que nunca se engana no percurso e que respeita os demais na estrada como seus irmãos de sangue. O assento onde o motorista apoia as nalgas é um trono sagrado que emana poderes fantásticos. Não restem dúvidas: num transporte público, o meu motorista é sempre melhor que o teu.
Vide o taxista, por exemplo. Eis alguns comentários de pessoas fora do táxi:
- Fogareiros estúpidos! – vocifera a D. Carmelinda.
- Atrasados mentais com a mania que a estrada é toda deles! – vitupera o Manel Enfrascado.
- Deviam tirar-lhes o carro e queimar-lhes a carta de condução! – impugna o Sr. Matos.
Contudo, no interior desse mesmo táxi, as mesmas pessoas revêem a sua atitude para com o motorista, inspiradas pela aura mágica com a qual o homem que nos conduz nos inunda:
- Ó sr. taxista, o sr. não teve culpa no atropelamento, as pessoas é que são umas parvas que se atiram para o meio da estrada! – iliba a D. Carmelinda.
- Se calhar nunca viram uma inversão de marcha neste sítio, não? Vamos em frente, sr. taxista! - solidariza-se Manel Enfrascado.
- Estes gajos não sabem andar na rotunda, é o que é! E depois ainda buzinam! – aprova o Sr. Matos.
Quando ao volante, o condutor tem total liberdade para nos arranjar a melhor alternativa.
- Fez muito bem em ultrapassar aquele carro no semáforo vermelho, sr. motorista, aquele maluco estava a atrasar-nos a todos!
- Aqueles idiotas ficaram a gritar… andassem nos passeios, é para isso que foram feitos!
- Particular a circular na faixa do “BUS” devia dar prisão! Ignorantes, parece que não sabem ler! Já não há respeito!
Bem, ainda será possível, numa ou noutra situação, o estatuto de imunidade do condutor ser beliscado: quando não param na paragem e deixam as pessoas incrédulas, a ver o autocarro passar e elas de braço esticado, ou no caso de atrasos de horas. Ainda assim, obtêm-se explicações que atenuam a culpabilidade do motorista.
- Eu conheço aquele motorista e ele conduz melhor que ninguém. O problema é que ele vê mal ao perto e nem sempre nos vê a acenar…
- Ele se não parou tinha os seus motivos. Se calhar porque o autocarro vinha a abarrotar. Ou porque não lhe apeteceu parar. Sabe-se como é, ganha-se balanço e depois é difícil parar… Temos de aceitar.
- Isto do atraso é culpa da chuva e desses senhores que querem armar-se em grandes e trazer o carro para dentro da cidade com um tempo destes!
- Pois é, a camioneta avariou-se porque está para ir para a sucata! A companhia rodoviária não sabe apetrechar os excelentes motoristas que tem com as condições devidas! Eles fazem o melhor que sabem!
Estamos cientes que a travagem brusca pode provocar acidentes dentro do veículo. Quando existem uma ou duas travagens bruscas, a responsabilidade foi de alguém (“Estúpido! Anormal! Cabeçudo!”) que se atravessou à frente do nosso bondoso transporte. Mas se forem muitas travagens por viagem… o motorista cai em descrédito. Sim, as travagens bruscas podem destruir o prestígio dum condutor. O pedestal onde deveriam estar parte-se em cacos e a sua reputação ficará indelevelmente manchada durante o resto do percurso. Os mais ressentidos irão mesmo evitar andar noutro transporte conduzido por esse condutor durante algum tempo. Imaginamos como se sentirá o motorista, debaixo do coro de protestos que se levantam aquando da terceira ou quarta pisadela mais vigorosa no pedal do meio:
- Deve pensar que está a conduzir animais! – insinua a D. Carmelinda.
- Este tirou a carta ontem, de certeza! – raciocina o Manel Enfrascado.
- A empresa tem pouco dinheiro e depois vão buscar estes gajos que nem conduzir sabem… fiquei com a perna toda negra e ninguém me vai pagar as pomadas! – enerva-se o Sr. Matos.
Pois é, apesar de todas as vantagens, o motorista não pode abusar sem limites. Porque de “ucraniano” a “Sr. Sergey” e de “Sr. Sergey” para o “russo maluco” vai somente a distância de uma ultrapassagem rasante ou de uma travagem derrapante. Embora, feitas as contas finais, a profissão de motorista seja altamente moralizadora para quem está habituado a ser escória da sociedade. Ah, grande motorista, és o maior!

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