segunda-feira, agosto 06, 2007

Ao Avançado Desconhecido

Penalty.
Protestos, assobios, confusão, aglomeração de jogadores em torno do juiz. Decisão irreversível, inapelável. Está marcado. Bola aos 9,15m. Guarda-redes na linha. Jogadores a postos na linha da grande área. Agitação indubitável. O cronómetro assinalava o último minuto da última jornada.
- Se fosse o Bartolomeu a marcar, nem valia a pena este ritual; era golo certo.
Mas Bartolomeu estava noutro campo, a quilómetros de distância. Sozinho. Marcando golos solitariamente perante as bancadas despidas, ao lusco-fusco. Redireccionando o esférico uma, duas, três, múltiplas vezes em direcção às redes desertas. Remarcando o golo da sua vida por mais uma ocasião. Festejando o momento inesquecível da sua glória num campo vazio, apenas com a companhia do vento.
Bartolomeu estava fora-de-jogo. Mas não havia bandeirinha nem árbitro que o sancionasse. Nem público que o assobiasse ou o ovacionasse, ninguém de todo. Mais que um simples fora-de-jogo, Bartolomeu estava fora do jogo, tanto em termos espaciais como temporais. Em movimentos melancólicos e nostálgicos, repetia o movimento da sua vida, repisava o trilho da sua efémera glória só para si.
As ovações já lá iam. Foram estrondosas naquela tarde de decisões. Bartolomeu construíra a imagem do goleador frio. Quando o peso dos nervos se acercou e quando o jogo tomou os caminhos de vida ou de morte, Bartolomeu impôs-se. Ele cresceu quando todos tremeram perante a pressão dos grandes momentos. E, naquela tarde, Bartolomeu correu sozinho em progressão pelo flanco direito desde a linha de meio-campo; torneou um médio, desviou-se doutro médio com um toque de classe em velocidade, sentou o lateral à entrada da área, fez instantaneamente um túnel ao central que foi ao seu encontro, deixando-o a arrastar-se pelo chão, e, cara a cara com o guarda-redes, quando a multidão roía as unhas ou se levantava em antevisão do golo iminente, em vez de o fuzilar, picou-lhe a bola por cima e o guarda-redes, embasbacado, ficou incapaz de reagir, ajoelhando-se no chão e contemplando a trajectória da redondinha, calma e docemente a anichar-se nas redes. Foi a glória. Último minuto, vitória certa.
- Que classe.
- Que calma.
- Que golo fantástico.
- Um iceberg humano.
Depois dos imediatos e incontáveis elogios, mil imagens e metáforas se construíram à volta do herói da bola. A do iceberg colou. Passada a euforia, Bartolomeu derreteu penosamente perante o brilho doutras jovens estrelas que entretanto foram chegando. A vitória proporcionada por Bartolomeu abriu as portas do seu grémio à fama e ao dinheiro. As coisas ficaram mais fáceis. Os velhos mitos foram forçados a sair dos seus pedestais. Bartolomeu reforçou as suas ligações com o banco de suplentes, numa primeira fase, depois conheceu o frio das bancadas, e, por fim, a porta de saída do estádio, por onde todos entravam para ver os seus novos ídolos refulgirem. O iceberg Bartolomeu ficou apenas na memória dos mais velhos. Derreteu-se definitivamente após consecutivas lesões, consecutivas oportunidades perdidas, consecutivas bolas que lhe fugiram pelas linhas laterais ou finais, apitos que nunca apitaram faltas por ele sofridas, guarda-redes espertos e ágeis que lhe sorriam jocosamente com a bola nas suas mãos.
E hoje, na ressaca do êxito, houve alguém que falou em Bartolomeu, na altura do penalty decisivo. Era uma hora de angústia. Era o momento da catarse final, depois de todos os excessos recentes. Ou se continuava a ser ou se deixava de ser. Podia ser o ocaso de uma era. Alguém se lembrou de Bartolomeu, como alguém se lembra de Santa Bárbara na hora da tempestade. Mas Bartolomeu ainda estava no campo antigo e abandonado, revivendo o grande momento de anos passados.
- Quem é o Bartolomeu?
Quando o avançado, tenso, partiu para a bola, Bartolomeu olhou para a baliza deserta da linha de meio-campo e voltou a correr, driblando adversários imaginários, revivendo a imagem que sempre ficara intacta na sua mente – um toque para aqui, outro para ali, a mudança de velocidade que deixara todos impressionados. Quando o avançado tocou o esférico naquele segundo decisivo sob os holofotes, Bartolomeu acariciou ternamente a velha bola de cautchu por baixo e fê-la subir, naquele plácido entardecer, até junto da barra ferrugenta, roçando as teias de aranha. No estádio repleto, a multidão não queria acreditar. O guarda-redes deitado no chão agradeceu à sua sorte. A bola, pontapeada com violência, sem grande jeito nem fé, zurziu por cima da barra. Foi parar ao desconhecido. Falhanço clamoroso. Mãos nas cabeças. Desolação. O recolher das bandeiras. O silêncio caótico. A incredulidade insuportável. O fim.
No campo deserto, a vetusta bola agradeceu, outra vez, o contacto com as redes rasgadas. Bartolomeu foi quem marcou aquele golo. O seu golo.

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