sexta-feira, junho 23, 2006

O Casamento



A igreja estava francamente iluminada. Os olhos de muitas mulheres avermelharam e deixaram escorrer uma lágrima ou outra, salpicando os seus vestidos de gala com um misto de felicidade e de deslumbramento. Os homens, mais sérios, mas com a mesma formalidade no vestuário, assistiam com um descomprometimento natural, como se estivessem a observar um jogo de futebol entre o Estarreja e o Valecambrense. O padre, solene, dirige-se ao noivo:
- Inácio, aceita Acácia como sua legítima esposa, amá-la e cuidar dela, nos bons e nos maus momentos, até que a morte vos separe?
Inácio franze a testa, olha para Acácia impregnado de dúvidas e não consegue calar a sua inqueitação, rompendo o sepulcral silêncio da igreja, que apenas admitia uma resposta: “Sim”. Ou então “Sim, sim”. Ou ainda “Pois sim”. Qualquer partícula afirmativa.
- Sr. Padre, nos bons momentos, sim; agora nos maus momentos?... Não sei, ela é um bocado chata…
Espanto generalizado na igreja. Cristo arregalou os olhos na cruz, os santos cochicharam com os anjos, os convidados entreolharam-se abismados. O padre deteve-se um pouco, olhando os noivos por cima dos óculos e reformulou a pergunta:
- Inácio, aceita Acácia como sua legítima esposa, amá-la e cuidar dela, nos bons mas não nos maus momentos, até que a morte vos separe?
Inácio, mais aliviado, ainda não estava plenamente satisfeito.
- Sr. Padre, essa parte dos “maus momentos” , tudo bem; mas cuidar dela não me parece muito bem. Ela já tem 27 anos, é crescidinha, e eu nem sequer sei fazer comida nem passar a ferro.
- Que parvo, Inácio! – reagiu baixinho a noiva, para que só Inácio ouvisse. Estava indignada, embaraçada com a situação. Um burburinho invadiu a igreja, aos pais dos noivos brotavam as primeiras gotas de suor na testa, a incredulidade tomou os sacristães de assalto. O padre agastou-se.
- Ó Inácio, você devia ter pensado nisso antes de vir ter ao altar de Deus…
- Sr. Padre, a mim disseram-me que ia haver um ganda almoço com comes e bebes à descrição, só isso…
- Inácio! – gritou a noiva, abafando o grito com a mão em concha em frente da boca. Desatou a chorar. Foi um escândalo. O som de fundo de um mar de comentários alagou o santo edifício, compromentendo seriamente a cerimónia. Os pais da noiva saltaram em seu apoio, agarrando-a e disponibilizando os seus ombros para que ela libertasse a angústia das infâmias que ouvira. Inácio defendeu-se, tentando colocar água na fervura.
- Meus amigos, não me levem a mal, mas acham que eu estaria aqui se não fosse para comer e beber? A gente já leva 5 anos de casamento na prática… moramos juntos, já fui com ela a Badajoz abortar, eu já tenho filhos ilegítimos da nossa vizinha Daniela, já lhe fui às trombas umas 2 vezes por lhe ter encontrado com o canalizador… Qual é o stress?
(Nesta altura, blasfémia das blasfémias, ouve-se Marlon Brando como narrador em voz off, citando languidamente o seu papel em “Apocalypse Now”: “The horror, the horror…”)
O horror. Crianças irromperam num choro convulso e protestos ecoaram por toda a igreja, a água benta começou a ferver e as hóstias partiram-se em bocadinhos, irritadíssimas. O padre já nem conseguia dizer nada, benzia-se o mais rápido que podia, a tentar afugentar os maus desígnios que emanavam do descarado e ímpio Inácio. A noiva já soluçava de tanto chorar. Os pais dela estavam assombrados.
- Filha, – indagou cuidadosamente o pai – o… o que o… Inácio disse… é verdade?
Ela só conseguia chorar, não confirmando nem desmentindo. Inácio, frontal, desiludido com o rumo da situação:
- Pois é, meus amigos… a vossa filha é uma maluca do pior… Enganou-me com esta tanga do casório, é o que é… eu a pensar que iria apanhar uma ganda bubadeira e o que ela afinal queria era fazer-se passar por uma pessoa de bem junto dos seus amigos e familiares… ‘tá bem, ‘tá… quem não lhe conhecer que lhe compre…
Alguns convidados mais exaltados começaram a gritar para o altar, exigindo o escalpe de Inácio. A mãe da noiva desmaiou e o pai da mesma apontou-lhe um indicador enfurecido, ameaçador. O organista estava estarrecido, de boca aberta, incapaz de tocar mais algum “Avé Maria”, e as meninas do coro eram encaminhadas para fora da igreja pelas beatas mais conservadoras, não fossem ouvir e contar mais do que já tinham ouvido e podiam contar. Perante este cenário de crise, o padre, que tinha aguentado silenciosamente todas as calamidades proferidas por Inácio, insurgiu-se e berrou de forma a acalmar toda a igreja:
- CHEGA! CHEGA! Vamos lá acabar com este degradante espectáculo! Deus está bastante desgostoso destes Seus filhos, gente impura de casta duvidosa que poluiu este espaço sagrado com expressões demoníacas! Ouvi o que tenho para dizer!
Todos olharam para o padre, que suava e ruborizava, espumando levemente ao canto da boca. A igreja voltou ao silêncio.
- Inácio, queres ou não casar-te com Acácia?
- Bolas, Sr. Padre, eu só quero comer e beber…
- SIM ou NÃO?!?
- Eh, pá… não.
- Acácia, queres ou não casar-te com Inácio?
Acácia ainda estava demasiado emocionada para articular algum som que se parecesse com uma palavra.
- Eu considero isso um não. Protanto, declaro-vos não-marido e não-mulher. Agora, DESAPARECEI DAQUI!
Aborrecidos com toda a situação, os convidados dirigiram-se para fora da igreja, tomando lugar para as fotografias da praxe antes do copo-de-água. Inácio estava visivelmente mais feliz que Acácia, que se extinguia, quase sem água no organismo de tanto chorar, apoiada pelo pai – pudera, o almoço seria numa casa de renome, famosa pela qualidade dos seus enchidos e vinhos.

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