terça-feira, junho 27, 2006

A Mala


Quando o desespero aperta, procuram-se os melhores remédios. Não há clarividência nem tempo que permitam buscar por prevenções possíveis – interessa é o resultado final, a resolução definitiva, esgotadas que estão as alternativas pacíficas de conciliação. Em gíria futebolística, dir-se-ia que chegara a altura do “chuveirinho” para a área contrária.
Alfredo sabia que não tinha espaço de manobra. Urgia resolver a encrenca onde se enfiara.
Os amigos, diz-se, são para estas ocasiões. Nada melhor que um velho conhecido que fosse dealer.
Tó M., como lhe chamavam os íntimos, era um dealer de quase tudo o que fosse ilegal. Ele conseguia, com imenso “savoir-faire”, traficar droga, mulheres, influências e até cromos impossíveis de arranjar para completar colecções de futebol. Alfredo buscava por um meio radical de resolver o seu problema e Tó M. certamente saberia dar um seguimento viável ao seu tormento conjuntural.
Imbuído por esta luzinha de esperança, foi de manhã cedo até Chelas. Encontrou Tó M. de boxers no seu T1, acabado de acordar e já com um risco de cocaína em cima do tampo da mesa, ao lado do pacote de manteiga que derretia sob o calor da torradeira.
- Então qual é o problema, man? – questionou Tó M., aura de gangster calejado após mais uma baforada no cigarro que acendera e que viera no último carregamento contrabandeado.
- Tenho um ganda problema, Tó M.. Voltei a ser apertado… - respondeu um preocupado Alfredo, aproveitando a oferta de um cigarro que acendeu nervosamente, enfatizando as reticências no final da sua frase.
Tó M. sorriu, olhos cerrados pelo fumo. Sabia a solução. E Alfredo estava com sorte, ainda ontem tratara de orientar os instrumentos para tratar deste tipo de situações.
- Man, és um gajo de sorte. E és um gajo fixe, que não faço isto a todos. Anda cá.
Alfredo acompanhou Tó M. até à casa-de-banho. Dentro da banheira estavam 3 caixas fechadas e mais um fardo de haxixe que largava um forte perfume, o que permitia a Tó M. não pensar em ambientadores, mesmo para a mais terrível diarreia. Com uma calma orgulhosa explicou o que ali repousava.
- Man, o que vês ali no primeiro pacote é uma arma de bolso israelita, calibre 16, bastante eficaz, utilizada pela defesa pessoal do primeiro-ministro deles. É discreta e fácil de manejar. A ti até te arranjo o silenciador. Um tiro bem dado e o sacana nem vai sentir o que o limpou. É uma arma do mais preciso que podes encontrar.
- Pois, mas não é bem isso o que queria… - explicou Alfredo, arrebitando as sobrancelhas em sinal de desilusão.
- Man, não digas mais nada! – apaziguou Tó M. – De vez em quando aprecias um espectáculo mais sangrento, não é? Eu também curto. Ao lado está uma caçadeira de canos cerrados utilizada pelos caçadores de ursos do Canadá. Um balázio destes dá cabo dos cornos de qualquer um, torna o cabrão irreconhecível. Man, os bacanos que se meteram contigo vão fugir para Marrocos, de tão cagados que vão ficar ao ver o chefe deles assim!
- Eh, pá, mas eu não quero o chefe de ninguém nem quero ser apanhado a dar um tiro em alguém! – frisou Alfredo, já perturbado com a falta de alternativas evidenciada por Tó M. Tó M., por seu lado, não desarmou, consciente que detinha a chave que abria as portas iluminadas para Alfredo sair da sua embrulhada.
- Já sei o que queres, meu malandro… Queres dar logo cabo do gang todo sem meteres a mão na massa. O que tens ali no pacote mais ao lado é uma metralhadora de calibre de guerra, utilizada pelos maomés no Iraque. É um bocado barulhenta, mas a um preço inigualável. Man, nem sabes o que foi convencer o sócio para trazer esta arma! O gajo já estava todo passado, ah e tal, não pode ser, na Brandoa pagam-me melhor, mas, pronto, cá está ela. E se quiseres eu falo aqui com uns ciganos que por uns milhares de euros limpam-te o sebo ao gang. Mas o gang tem de ser de fora, sabes como é que é, os gajos não chinam pessoal de perto. Se forem da Margem Sul, esquece.
- Não é isso, Tó M.! – exasperou Alfredo – O que eu quero é uma mala.
- Uma mala?
- Uma mala. Para a Marisa.
- Man, tu queres uma mala para a tua mulher?
- Uma mala cor-de-rosa, de preferência. O ideal é ser igual a esta do catálogo – e Alfredo exibiu a folha de papel que retirou do bolso. Tó M. coçou a cabeça e apagou o cigarro na retrete. A situação complicara-se.
- Man, como é que eu vou arranjar uma mala dessas? Tu já viste na Louis Vuitton e na Longchamp?
- E na Hermés e no Corte Inglés também. Estive ontem o dia todo no Colombo, revistei tudo o que era Chloé. Nada parecido – Alfredo afundou-se no bidé, em franco desconsolo.
- Man, foi um stress para arranjar uns sapatos verdes que condissessem com os corsários cremes dela, juntamente com a mala que ela trouxe da H&M no ano passado… lembras-te que tive de raptar o canário do dono da loja e ameaçar a filha dele com uma seringa infectada, não te lembras?
- Sim, mas ela agora mudou de estilo. Largou o estilo casual e quer algo mais executivo, mantendo ainda alguma jovialidade nas cores.
- Eh pá, o estilo executivo-jovem é o mais difícil… tentar vestir-se nesse estilo é como andar num campo de minas: uma peça de roupa desfazada de outra e tornas-te na pessoa mais ridícula do teu escritório… - Tó M. reconhecia a gravidade da situação. Alfredo não aguentou e começou a chorar desalmadamente. Tó M. abraçou Alfredo, num claro sinal de solidariedade apenas ao nível da melhor máfia siciliana.
- Eu sei Tó M., eu sei! – balbuciou um ruborizado Alfredo, limpando os olhos – Eu não me devia ter esquecido dos anos dela. Agora é tarde demais! Estou perdido, perdido… É o divórcio… Adeus casa, adeus Sport TV…
E aí Tó M. reagiu – espera lá, sem Sport TV? Agora que o negócio das boxes quebrara com o início da transmissão digital, era imperioso conhecer alguém que pagasse pelo serviço legal. Senão, adeus jogos grandes. Ir para o café da esquina era improvável, pois já estava a dever largas quantias de dinheiro a todos os cafés das redondezas.
- Temos de nos orientar, man – concluiu Tó M. – E que tal se ofereceres uns brincos rosa, tipo argolas, com uns efeitos degradé nas pontas? São giros – avançou Tó M., enquanto acariciava a metralhadora iraquiana olhando para o espelho partido sobre o lavatório.
- Não pode ser… Ela já os tem… Só falta mesmo a mala.
- Man, eu só consigo uma mala dessas dentro de 2 semanas, no melhor dos cenários, e isto se falar com o Chico Monhé, que está com problemas no pâncreas e não tem andado por aí…
- Estou fodido! – convenceu-se Alfredo.
- Estamos nós – juntou Tó M.. Mas este, célere no raciocínio, logo adicionou mais uma alternativa – Man, e se eu te raptar por 2 semanas? Tu desapareces, dás tempo para que eu oriente a mala e ela ficará duplamente contente quando receber a mala e te voltar a ver!
- Isso é estupendo! – exaltou-se Alfredo, erguendo-se do bidé – Mas tem que parecer um rapto real, de preferência com ela a assistir!
- Sem problemas – confirmou em tom pausado o experiente Tó M. – Queres ser raptado por brasileiros do Rio ou por pretos da Damaia? Se quiseres, violamos a Marisa para parecer ultra real…
- Deixa estar a parte da violação… – dispensou Alfredo – Rapta-me como for melhor e mais convincente.

Assim foi. O rapto correu bem, o automóvel foi interceptado numa esquina escura da cidade, às tantas da madrugada, após uma inusitada viagem nocturna proposta por Alfredo a Marisa, que nem estranhou. O gang levou Alfredo, partiu os vidros da viatura e ainda apalpou Marisa, que ficou apavorada, em estado de semi-choque. Alfredo ficou na casa de Tó M.. durante duas semanas, a ver Marisa em pranto nos telejornais clamando pela sua vida, pela sua restituição, pela punição exemplar dos facínoras que o levaram. E ele ali, calmamente, enquanto Tó M. controlava a situação. Ao fim de 13 dias chegou a mala, embrulhada em plástico amarelado. Alfredo poderia partir à sua vida normal.
- Sabes, man – virou-se Tó M. – o Chico Monhé tinha uma outra mala cor-de-rosa, da nova colecção. Era espectacular, tinha uns folhinhos de lado muito giros e combinava na perfeição com um casaquinho branco com umas golas fenomenais, do mais chique que vi ultimamente… mas como era esta que estava prometida…
- Eh, pá, obrigado, Tó M. – agradeceu Alfredo, emocionadíssimo – És um ganda amigalhaço!
- Depois diz-me se ela ficou contente.
Marisa ficou radiante, pelo regresso de Alfredo e pela mala que ele trouxe. Beijou-lhe imenso e prometeu-lhe uma sessão de sexo arrebatadora nessa noite. O casamento dos dois estava são e salvo, bem como a Sport TV. Tó M. diria depois:
- Man, os amigos são para as ocasiões. Se tens algum problema, fala aqui com o Tó M..

1 comentário:

. disse...

O Alcides foi outro. "Raptaram-no" para não ficar mal ter chegado atrasado ao estágio.