segunda-feira, junho 19, 2006

O Menino Que Chora


- Olha, se não te importares, posso fazer-te mal?
O pintor fazia um esforço para mostrar-se muito calmo. O miúdo ficou tentado a dizer que sim, inebriado pela claridade que furava a brecha na janela daquela cave despida e pelo canto de sereia do pintor.
- Vá lá. É só um bocadinho de mal, não vai custar nada.
O miúdo baixou a cabeça, saltou do banco. O senso comum berrou bem alto.
- Mas eu acho que se me fizeres mal isso não vai ser bom para mim...
- Eh pá, mas isso vai ser bom para nós, puto! - explodiu o pintor - É uma ideia que vai subverter todas as convenções da arte! Tu podes ser uma estrela! Ganharemos projecção internacional! Eu não te vou aleijar muito, prometo!...
- Uma estrela? Como a Maria Amélia d' "Os Morangos com Açúcar"?
- Mais do que a Maria Amélia! Muito acima dela! Estratosfericamente acima dela! - exultou o pintor, gestos largos por baixo da capa tingida por cores secas, boina a escapar-se-lhe da testa.
O miúdo mordeu os lábios e olhou para o pintor, que lhe fixava com um sorriso desenhado na cara, em expectativa, dobrado para si, braços estendidos para si.
- Qual é o mal que me queres fazer?
- Pouco mal, pouco mal!... Um poucochinho de mal... Um malzinho, vá lá. Pronto, eu nem devia chamar aquilo de mal... É mesmo uma coisa pouca...
- Tipo o quê?
- Tipo um pontapé nas canelas, daqueles que os teus amigos te dão quando jogas à bola...
- Não!
- Então um calduço, como se estivesses a jogar à batata-frita...
- Não!
O miúdo parecia começar a embirrar. O pintor insistia.
- Um corte com o x-acto no indicador da mão esquerda? Uma leve torção do pescoço? Um puxão nos cabelos? Espremer-te uma borbulha nas costas?
- Não! Não! Não! Não! Isso aleija-me!
- Mas não te aleijo muito, prometo... Que tal uma estaladita nas trombas?
- Não! Tens que me fazer mal sem me aleijar! Tens que me fazer um mal que eu goste!
O pintor exasperou. O miúdo não estava a cooperar.
- Dá-me um rebuçado... - pediu a criança, inocentemente.
O pintor anuiu, enfadado. Deu-lhe um caramelo espanhol que habitava no seu bolso há vários meses. Duríssimo. Mais resistente que as decrépitas paredes daquela húmida e secular cave.
- Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Que merda é esta que me deste? Os meus dentes!!!!!!!!! - e o miúdo deixou escapar uma lágrima.
Ficara aberta a porta para a eternidade.
- Chora, puto, chora... Isso... A dor de dentes é tramada, não é? Agora põe o teu rabinho em cima do banco e fica quietinho... senão comes outro caramelo espanhol!
- Que merda, pá! Este caramelo é pior que a sopa de agrião da avó!
O pintor mordiscou a língua que se escapulia pelo canto da boca e, com a mestria própria dos artistas predestinados, captou o escorrimento da lágrima sobre a cara luzidia da criança. Consta que não teve filhos nem molestou mais crianças durante toda a sua vida.

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