segunda-feira, julho 17, 2006

Descendência


No reino animal, não é frequente um comum bicho possuir a veleidade de “ter filhos”. Eles apenas se “reproduzem”. Nunca ninguém cobriu as férias da senhora melga com a sua prole pelas Caraíbas, nem nunca houve uma reportagem especial sobre o nascimento de mais 500 milhões de descendentes de um ácaro de carpetes, ou mesmo uma festa de homenagem aos papás pintassilgos pelo rebentamento de mais uma ninhada sua.
A característica de “ter filhos” é essencialmente humana. Revela um poder de decisão e de influência sobre o destino. Controlo absoluto sobre as suas necessidades fisiológicas e capacidade de definir o timing exacto para constituir os seus herdeiros. Já os animais irracionais, meros figurantes neste mundo, uns mais carinhosos que outros, alguns mais passíveis de serem convertidos em figuras de peluche atiradas para as prateleiras de um hipermercado, apenas têm o direito de se “reproduzir”. Não mantêm sequer uma relação duradoura com os seus filhos e, em muitas situações, os próprios filhos voltam para estabelecer relações reprodutivas com as próprias mães. Nos animais é perfeitamente natural, nos humanos é uma perfeita abjecção, incesto de primeiríssimo grau.
Os animais não escolhem. Quando chega a Primavera, o pólen das flores mistura-se com odores imperceptíveis aos humanos e lá o esquilo sente a necessidade inquestionável de se “reproduzir”. Não para mostrar fotografias aos seus amigos esquilos de quão belos são os seus esquilinhos, mas apenas porque lhe foi imposto pela Natureza, pelo instinto. Durante a infância dos pirralhos terá uma carga de trabalhos, que também não questionará, mas depois cada um seguirá a sua vida.
Nos humanos, já não será bem assim. “Reprodução” é um conceito um tanto ou quanto científico e frio demais, daí falar-se em “ter filhos”, que é uma expressão mais agradável e acolhedora. Regra geral, há uma preocupação perene pelos filhos. Existe mesmo a ansiedade de saber se o bebé que esta em incubação precoce na barriga da mãe será futuramente um viril homem, forte fisicamente e dotado intelectualmente, ou uma bela mulher, voluptuosa na juventude e mãe extremosa numa fase posterior. Durante os primeiros tempos, todos os papás julgam que o seu filho poderá ser a “next big thing” da Humanidade, que está ao seu alcance o encarreiramento do seu filho para que essa imortalidade surja, que está nas suas mãos a decisão do futuro dos povos. Basta que os papás, quais Mourinhos da vida, consigam captar os pequenos sinais e extrair o melhor rendimento dos diamantes em bruto que são os seus filhos.
Adelino observava com discrição o seu filho a entreter-se com uma consola de jogos na ombreira da porta. Abordou-o, mesmo sabendo que o jovem Adelino não iria desligar as atenções do ecrã.
- Ouve lá, filho, tu já pensaste no que fazer à tua vida?
BANG! PAF! ADUNKEN! HO-RYU-KEN! Ti-ri-riu-Ti-ri-riu… Game Over.
- O que estavas a dizer, pai? – enquanto reiniciava o jogo, levemente desiludido por ter perdido o combate anterior.
- Tu devias ser como este gajo – e revela a fotografia. Ao olhar para a fotografia, o filho replica:
- Então mas esta é a gaja que foi capa da Maxmen no mês passado, só que sem soutien…
- Eh, pá, não era essa fotografia – diz, embaraçado – É esta! – rectificando.
- Quem é este gajo? – estranha o filho, fazendo “pause” ao jogo.
- É o Robert de Niro n’ “O Padrinho II”.
- Que é isso? – aborrecido, recomeça a jogar.
- O Robert de Niro, a interpretar o papel do jovem Vito Corleone. Um jovem que venceu na vida começando do nada, sem nunca esquecer a sua família nem as suas origens. Como tu podes ser, filho… Um homem que impõe respeito pelos seus valores…
- Iá, iá… Merda!, voltei a avacalhar… - ouviu-se o cavernoso “Game Over” outra vez.
Ou então, Timóteo, que também abordou o seu filho enquanto este via um jogo de futebol.
- Filho, já te vi a fazeres um pontapé de bicicleta nos jogos com os teus amigos… tu podes ser o novo Rui Costa! – exultou.
- Mas eu chamo-me Possidónio Sebastião Rascunho dos Sapos, pai… e sou vesgo. Só quis acertar no meu colega que me estava a chatear… - e foi golo do Gil Vicente, contra a corrente de jogo.
Não interessa. Os humanos têm ambições desmedidas e sonhos infinitos. Os animais resignam-se com o que têm e mais não querem, seguem o relógio biológico de uma forma inexorável. Joana não. Joana é o exemplo da evolução humana. Joana procura status. E disse-o a Amílcar.
- Amílcar, a nossa vida não tem charme. Faz-nos falta algo.
- Acabámos de frequentar 4 festas das tuas amigas, fizemos um cruzeiro pelo Mediterrâneo, férias nas Maldivas e esquiámos na Suiça. Tens um todo-o-terreno topo de gama com zero quilómetros na garagem do apartamento de luxo no Parque das Nações e já foste à manicura 3 vezes hoje… o que te falta?
Joana ficou de certa forma indignada com a falta de perspectiva de Amílcar.
- Ó Amílcar, temos de fazer um puto! Quero emprenhar como a Cila Montepio Geral e a Caixa Amália dos Depósitos! Já viste como elas são felizes? Já viste as oportunidades que se podem abrir?
- Fraldas e mais fraldas e acordares sobressaltados a meio da noite? – respondeu Amílcar, secamente como o barulho de um cofre a fechar, de forma a irar Joana.
- Ai, Amílcar! – exaltou-se – Seremos convidados para as festas de anos dos filhos dos outros! É uma janela social que se abrirá! Quero ter um filho, pronto!
- Não te chega um cão? Já viste que ficarás mais gorda e provavelmente deformada depois do parto? As tuas mamas vão parecer balões descaídos e as tuas pernas ficarão cheias de varizes e celulite… - advertiu Amílcar. Joana reconsiderou.
- Visto dessa forma… a Marina Comercial Português ficou mesmo muito feia… e a Roberta Espírito Santo adoptou dois gémeos gaboneses… Um cão, disseste tu?
- Sim, um pequeno Poodle ou um Yorkshire Terrier… algo que seja facilmente abandonável quando formos de férias para o resort do Brasil…
- Não! – reagiu Joana, acordada do torpor que momentaneamente a afectara – Quero mesmo um puto! Vai sair de dentro de mim e vou ser elogiada por isso! O cão não sabe sequer falar! Amanhã trata de me fornicares a valer, ouviste?
Embora possamos encontrar uma situação com contornos animais – um humano apanhado desprevenido no rodopio da tentação carnal, envolto nas contrariedades fisiológicas inerentes às relações amorosas desmedidas e instintivas. E também sem planos de fundo destinados aos descendentes. Vânia será mãe pela 9ª vez. O seu parceiro, Gualter, fez apenas duas perguntas na visita da assistente social à sua casa na Reboleira:
- O que é um preservativo?
- O que é a masturbação?
Sobre o futuro deste filho, resposta pronta: “Para as obras, como os outros todos!”. Mesmo as filhas seguiriam esse horrível destino? “Filhas? Ah, as empregadas domésticas? Se quiserem, também podem ir, só lhes faz é bem!”.
Digamos que, nalguns casos, “reprodução” ainda é um conceito aplicável aos humanos. Mas, por favor, não o digam em público e reservem-no para quando visitarem algum bairro de lata perto de vós. Pois o mundo minimamente desenvolvido, o que interessa, o que enche de cor-de-rosa as nossas vidas e as páginas de múltiplas revistas, só fala em “ter filhos”, nunca em ninguém que virá por algum acaso e que não merecerá atenções especiais, mas sim em parir bebés banhados na luz da semi-perfeição. Filhos que irão salvar o mundo, deles e dos outros, bem entendido.

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