quarta-feira, julho 26, 2006

Suecada


(Quadro de Paul Cézanne - 1890/95)


Estou farto daquele gajo. Não aguento a sua mania de superioridade. Olhem para isto, para a displicência com que lançou a dama de copas que cortou o meu ás de paus, a forma desleixada como recolheu os 16 pontos em jogo e o modo irritante como ajeitou as 4 cartas no seu monte de jogadas ganhas.
Ele nem sequer sorri. Ele não se gaba de nada. Ele apenas olha as cartas de soslaio e destrói-nos os sonhos com ténues e insolentes movimentos de pulso. Ele deita por terra as nossas ambições com um carta ainda melhor. Ele ganha-nos os jogos todos assim, sem esforço, qualquer que seja o parceiro. Isto é psicologicamente devastador.
Parece que ele possui um desígnio qualquer concebido por alguma obscura divindade pagã. Ele faz-me sentir mal por não ser assim, filho escolhido da sorte.
Eu não sou especial. Quando me vejo com seis trunfos, começo a jogá-los de modo a secar os restantes. Quando tenho ases, saltam-me logo nas primeiras jogadas. Quando não tenho nada, queixo-me, desalentado, lamentando-me da minha sina para que o parceiro saiba e acorra em auxílio. Eu não tenho truques, sou previsível como todos os outros. Não despejo surpresas na mesa, por mais intrépido que seja meu sonoro bater de punho no tampo. Eu sou forma, ele é conteúdo.
Nunca sabemos donde ele lançará o perigo; se daquele inocente terno jogado logo ao início, se daquele trunfo que julgávamos ter sido disparatado ou daquela manilha aparentemente seca. A ameaça vem de todo o lado, em forma de qualquer naipe. Nós não escapamos. Ele é um fantástico predador furtivo e, para além disso, utiliza tácticas de distracção, lança cantos de sereia quando menos se espera. Ele é virtualmente imbatível com um jogo mediano. No fim do jogo, parece que as vítimas vieram implorar-lhe para que ele as derrotasse.
Ele é terrível. Mantém-se impassível, mesmo quando, por algum acaso, perde algum jogo. Eu sei que ele não gosta de perder, mas ele não o mostra. Ele regressa em força no jogo seguinte, com mais sede de vencer. Mas sempre calmo. E eu, nervoso, ansioso que nem um passarinho que vê a porta da gaiola aberta, exulto, gozo com ele, zombo com a sua divindade, gracejo com a minha fugaz vitória. E faço-o enquanto posso, porque sei que, feitas as contas, ganharei uma mísera batalha numa guerra sangrenta.
Gostava que ele sentisse a humilhação da derrota, o vazio de um desejo destronado sem complacências, sem a mínima misericórdia. Porque eu não lhe dou hipóteses, sou cruel. E, contra ele, tento batota sempre que posso. Que mais podiam exigir a um pobre coitado como eu? Tenho de fugir do meu destino da maneira que posso. Raramente consigo.
Ele pura e simplesmente não se exprime. Raios!, mas ele não terá sangue a correr dentro de si?! Sente a derrota, cabrão! Fica pelo menos feliz por me ganhares, pôrra! Perde com desilusão! Sê humano! Dá-me esse prazer de te ver em angústia!
Nada… O silêncio que lhe compõe a figura na hora do massacre é o mesmo na hora da recolha. Parece que nada lhe move. Ganhar-me é apenas um piscar de olhos, é fácil e automático. Perder é insignificante.
No fim, são 61 pontos para ele. Fico a pensar porque guardei o rei de espadas até à última jogada. Foi graças a esses quatro pontos que ele ganhou outra vez. Sem um murmúrio. Acabámos de contar os pontos já ele baralhava as suas cartas, com aquela convicção enervante da vitória que tinha contado ponto a ponto.
- Jogamos outra vez? – perguntou de uma forma tão melodiosa que até me agoniei.
Jogo sim. Mas quero jogar com ele. Contra ele apenas sofro. Agora quero ser o cúmplice e sentir-me como a divindidade.

1 comentário:

. disse...

:)

É como a Alemanha (quando ganhava sempre). Mas sem pragmatismo, a sorte, toda ela, é nada mais que uma ficção com resultados esporádicos. Como a Alemanha e como a religião, acrescento.