segunda-feira, julho 31, 2006

Mão Morta "Revisitada" (1995)


Bem-vindos ao sórdido universo Mão Morta. Um excelente aperitivo é a mão decepada da cover do álbum.
Este foi um projecto pioneiro ao nível do Rock português (e mundial?). Hoje parece comum ouvirmos falar em “revisitação” de temas, mesmo com outras bandas a prestarem tributos. Naquela altura, nem tanto.
Os Mão Morta inovaram mais uma vez, partindo de algo antigo – todas as faixas compreendem o período 1982 – 1991. Como? Simples: tocando as mesmas músicas com arranjos diferentes.
Desde a fúria punk de “Quero Morder-te As Mãos”, passando pelo assomo metal de “Anarquista Duval”, faixas onde a voz cavernosa do causídico Adolfo Luxúria Canibal assume o papel de barra de dinamite que explode toda a perversidade e raiva que está dentro de si, puxando para ele o papel óbvio do papão sanguinário e horroroso proveniente da cidade dos arcebispos; até às nítidas desacelerações de “Facas Em Sangue” e “Charles Manson”, onde o assassino decrépito murmura-nos palavras de fascinação negra ou exorta-nos delicadamente à idolatração do verdadeiro serial-killer americano; não esquecendo a sensualidade sofrida de “Chabala”, o delírio urbano-decadente de “Até Cair” e o coro de desgraça em “1º de Novembro” – o álbum tem múltiplos pontos de interesse.
Em qualquer das situações, e tendo em mente as gravações originais, nota-se que os Mão Morta prosseguiram uma longa caminhada até atingirem a desenvoltura técnica aqui ostentada. Talvez a banda, na qual o baterista multi-instrumental Miguel Pedro, o guitarrista/ teclista António Rafael e os repescados guitarristas Zé dos Eclipses e Carlos Fortes (já fora da banda por estas alturas) retêm igualmente um papel de relevo, se tenha apercebido que o forte potencial das canções escritas no dealbar da carreira poderia receber uma nova injecção de vitalidade, naquela altura em que o calo de anos de estrada e de estúdio já era perceptível e em que as condições técnicas dos próprios locais de gravação e conhecimentos de produção tinham evoluído consideravelmente. Depois, a banda mostrou quebrar tabus e barreiras pré-concebidas ao assumir um best-of (que é quase o que aqui se trata – falarei sobre esta questão mais à frente) de uma forma menos fácil do que seria expectável, que seria pura e simplesmente reempacotar as mesmas faixas num CD, apenas ganhando em termos de qualidade sonora. Louve-se o esforço que foi feito e que conduziu a excelentes resultados.
E porque não é este, em rigor, um best-of? Essencialmente, por dois motivos: o primeiro é a evidente desconstrução (no bom sentido, embora esta seja uma perspectiva assaz subjectiva) dos próprios originais; o segundo, porque a banda, sempre subversiva aos cânones editoriais, prescindiu de apresentar “revisitações” dos álbuns que, ao tempo, mais visibilidade tinham: “Mutantes S-21” (1992), com temas inesquecíveis como “Amsterdão”, “Barcelona” ou o faixa-gatilho que projectou o nome Mão Morta para os ouvidos do grande público “Budapeste”; e “Vénus em Chamas” (1994), um álbum conceptual demasiadamente desenfocado a nível musical (passe o paradoxo), que ainda assim produziu semi-hits alternativos com “Anjos Marotos”, “Escravos do Desejo” e “Velocidade Escaldante”. A banda podia sempre argumentar que esses temas eram demasiado recentes para merecerem “revisitação”, mas acabou por incluir “Budapeste” e “Velocidade Escaldante” como faixa escondida e sem alterações face aos originais. Portanto, este é um best-of tão distorcido como são os Mão Morta na sua atitude divergente para com o mundo que os rodeia.
Não é fácil entrar no mundo Mão Morta. Demasiado literários, amantes de Sade, Luiz Pacheco e de outros escritores libertinários, respeitadores da anarquia e sedentos de sangue, remanescentes musicais do gótico da década de 80, os Mão Morta nunca conseguiriam abraçar uma massa significativa da juventude que ia evoluindo nos seus gostos se não preferissem uma abordagem mais dimensionada ao rock-pop e menos presa ao tradicional minimalismo, temperado com pozinhos industriais, subjugado aos poemas diabólicos, narrativos e com a sua carga de voyeurismo de Adolfo Luxúria Canibal. Isto é, mais atitude rebelde também a nível do som. A inflexão ocorreu notoriamente em “Mutantes S-21”, se bem que o maldito “O.D., Rainha do Rock & Crawl” (1990) fosse já uma indicação do futuro mais pujante musicalmente, incluindo piscares de olho ao noise-rock (embora neste álbum se encontrasse o épico fundamental para a compreensão do espírito da banda “O Divino Marquês”, que não figura na “revisitação”). Daí eu aceitar que alguns fãs da “velha guarda” poderão ver as suas expectativas defraudadas ao ver estes velhos temas vestidos em roupagens menos negras e mais jovens, embora continue a pensar que muito da essência dos originais não se perdeu, apenas se transformou, nalguns casos mais que noutros.
Hoje em dia, assistimos ao natural amadurecimento da banda, quer a nível musical, onde os laivos industriais deram lugar com mais frequência a pianos e melodias, quer a nível lírico, onde as letras sobre caos e dor abriram espaço a palavras sobre a situação social dos tempos modernos, girando sobre a aparente loucura à qual estamos destinados com o rebuliço à volta do “big brother” que espreita de qualquer lado. Nenhum outro álbum, contudo, conseguiu sintetizar de forma tão crucial a alma da banda como este (note-se que “Müller no Hotel Hessischer Hof” (1997) é igualmente um espectacular exercício de conjugação entre som-poesia-drama e é, com justiça, o melhor álbum da última década destes bracarenses – embora assente sobre um autor exógeno à banda, o dramaturgo alemão Heiner Müller).
É, decididamente, essencial a qualquer apreciador do rock moderno português possuir este álbum. Ousem abraçar estes demónios e sentir a voracidade maléfica de Adolfo, Luxúria por parte da mãe, Canibal por parte do pai. O fado é somente português, sim senhor; mas os Mão Morta também não pedem meças a ninguém no que a originalidade concerne. Alguém alguma vez arriscou glorificar a morte na estrada de uma forma tão mórbida como em “Sangue no Asfalto” ou incentivou alguém a roubar quem lhe quer mal e quem lhe quer bem, como se escuta de uma forma perfeitamente distorcida em “Oub’lá”? Duvido.
Classificação: 8,5/10
Faixas a reter:
"Sangue no Asfalto";
"Chabala";
"Anarquista Duval"

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