domingo, julho 02, 2006

O Evangelho Segundo José Pratas


1992. O mundo acorda da ressaca pós-queda do Muro de Berlim. No leste europeu abrem-se brechas na cortina de ferro e aspira-se o pó levantado pelo ar que deu ao Pacto de Varsóvia. Em Moscovo bebem-se quantidades inimagináveis de Coca-Cola e Ieltsin propagandeia o vodka russo de uma forma sem precedentes.
Também em 1992, o Senhor da foto viveu momentos históricos. Em Coimbra, cidade estudantil, houve o privilégio de assistir a uma segunda queima das fitas no final do Verão. O velho Calhabé esteve ao rubro.
Para os mais distraídos, recordo que nesse FC Porto – Benfica para a Supertaça, José João Mendes Pratas, árbitro ao jogo filiado na AF Évora, correu (“fugiu” seria o termo certo para muitos) à frente de quase toda a equipa do FC Porto, perante os olhos da televisão pública e dos atónitos espectadores.
Mas não foi uma corrida qualquer, desenganem-se.
José Pratas parecia Forrest Gump, anos antes do filme ter estreado. Ele não correu por estar a ser ameaçado pela equipa do FC Porto, por querer colocar-se a salvo perante os pedidos de explicação exigidos por personalidades tão retóricas como Fernando Couto, João Pinto, André ou Bandeirinha, tão pouco queria escapulir-se por não conseguir aguentar a pressão de um ambiente tão civilizado como o do balneário do FC Porto.
José Pratas, qual Jesus, disse “Vinde a mim os pobrezinhos” e eles, extasiados, acorreram imediatamente à chamada de José Pratas e seguiram-no, sôfregos, ofegantes, ansiando por mais algum sinal seu, um bocado de cabelo, um pedaço do bigode, uma farpa de roupa, qualquer coisa.
Pratas conhecia o caminho de redenção, aconselhou calma como quem tenta guardar um saco de arroz de uma multidão esfomeada. E seguiu, correu para onde lhe levou o coração, a razão,
para onde as pernas permitiam.
Pratas pensou e disse “Como estais órfãos de um sentido para a vida, irmãos; vinde comigo provar a seiva divina da mais sagrada das fontes da liberdade; vinde comigo conhecer o mais sacro dos lugares prometidos na Terra; vinde comigo, irmãos do infortúnio”. E os seus intentos foram cumpridos de um modo avassalador, gerou-se um fervor incondicional pela sua figura de uma forma totalmente espontânea, tal o seu carisma. O seu chamamento atiçara a tentação infinita de felicidade sentida pelo plantel do FC Porto. Pratas tornou-se no mensageiro da fé, o carteiro da boa esperança, a luz ao fundo do túnel, o profeta da sorte, indicador do caminho para a eternidade.
Fernando Couto, por exemplo, ambicionava encontrar paz de espírito e alívio ao olhar-se ao espelho. André desejava ter mais cabelo. Bandeirinha, mais altruísta, só queria que se respeitassem os direitos humanos em Timor. E João Pinto, um homem sempre à frente do seu tempo, só queria beber as palavras que Pratas teria para dizer, deliciar-se com a aura daquele homem de preto vestido, tornar-se o seu discípulo de eleição, nem que tivesse que utilizar algum do seu costumeiro vernáculo.
Pratas não rejeitou as suas responsabilidades. Peito aberto, bigode ao vento, percorreu triunfante aqueles metros de relvado, como a imagem da mulher ícone da República com a bandeira na mão, numa alegoria épica à liberdade e emancipação dos povos. Para a história ficou ainda uma ficha de jogo sem expulsões.
1992 não pode ficar para a história apenas como o ano 1 do leste pós-bolchevista; em Coimbra testemunhámos quão espectacular pode ser a descoberta de um Messias num campo de futebol. Nunca Fátima esteve tão próxima do Futebol no país do Fado. Nunca mais veríamos uma manifestação de fé como esta num estádio até à realização de convenções de esdrúxulas
igrejas no Restelo.
Uma sentida homenagem a José Pratas.

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