quarta-feira, julho 19, 2006

Rotundas


O vereador abre a porta do gabinete do presidente da câmara. Ao fundo, o autarca-mor brinca com carrinhos Matchbox e bonecos da Playmobil por cima da ampla secretária de carvalho, com a bandeira do município do seu lado esquerdo, a bandeira da nação do seu lado direito e a moldura com o retrato de presidente da República no meio de ambas. Uma planta enorme amarelece com os fumos do charuto mal apagado no cinzeiro em forma de tripé ao lado da cadeira. Na gaveta, sem os vereadores saberem, o presidente guarda estojos da Lego entre fotografias pornográficas e pins da campanha de Manuel Vilarinho. O presidente olhou com recriminação para o autarca.
- É bom que seja importante, Jonas. Estava quase a apanhar os ladrões – avisou, grave.
- Há uma manifestação na rotunda à porta do edifício exigindo que se acabe com os constantes acidentes na recta do matadouro, Sr. Presidente.
- O que disseste?
- Peço perdão. Excelentíssimo Senhor Presidente – rectificou, atrapalhado.
O presidente deitou um boneco que tinha na mão esquerda para cima duma viatura de brinquedo e apontou para Jonas.
- Constrói uma rotunda nesse lugar e contrata um escultor espanhol para colocar uns bonecos de cimento no meio dela. Quero que haja um repuxo com iluminação nocturna também. Ah, e tem que ter um diâmetro de… de… Ó Jonas, quantos metros de largura tem a última rotunda que mandámos fazer?
- Aquela na Avenida 25 de Abril tem para aí uns 25 metros de largura…
- Essa não foi a última, Jonas. A última não foi aquela no meio da escola secundária, na qual até houve um puto que ficou preso nos canteiros e começou a gritar por socorro?
- Ah, sim, pois, tem razão, Excelentíssimo – corroborou Jonas – Essa tem para aí 50 metros de largura… vai do pavilhão gimnodesportivo até à cantina…
- Bem me parecia… então esta deverá ter 100 metros de diâmetro. E não te esqueças dos outros pormenores todos – voltando a pegar no Playmobil, montando-o em cima do popó – Vruuuuum! “Vou-te apanhar, gatuno!” Vruuuuum!!
- Mas, Excelentíssimo, já esgotámos todo o orçamento camarário a aperaltar rotundas… até colocarmos relva nessa nova rotunda será pedir muito, quanto mais um escultor espanhol…
- Como? – abespinhou-se o presidente, erguendo o pescoço – Então como pensas decorar a rotunda, Jonas?
- E se mandarmos as crianças da escola primária pintar uns painéis com guache? Os pais delas ficariam satisfeitos…
- Isso é melhor que alguma obra de escultor espanhol? É mais arrojado que algum projecto do Santiago Calatrava? Dá azo a que ganhemos algum prémio?
- Não, Excelentíssimo, mas…
- Não serve! – berrou o presidente – Ou é a melhor rotunda do país ou nada! Podes sair que já me incomodaste o suficiente! – zangado, atirou o carrinho para o caixote do lixo que ladeava a secretária – O ladrão fugiu!
Jonas quis insistir. O irascível presidente fazia muitas birras, já era comum. O interesse público, contudo, falava mais forte. Cautelosamente, avançou:
- Excelentíssimo Senhor Presidente, a população já está farta de rotundas. Acho que eles preferem umas lombas e um semáforo limitador de velocidade desta vez.
- Cemáfro? – surpreendeu-se o presidente, soerguendo as sobrancelhas – Que disseste?
- Semáforo, Excelentíssimo, semáforo – esperando que o autarca compreendesse. Mas ele continuava de boca aberta, estampando uma expressão de desconhecimento na sua municipal cara – Aqueles postes de três cores que regulam o trânsito – disse, sem efeito visível na tromba do presidente, que apenas abanou ligeiramente o queixo, sem emitir som – Aquilo que o Excelentíssimo retirou da rua que passa aqui à frente, mal foi eleito.
- Ah, as luzinhas em pé! Já sei! – lembrou-se, dando uma leve palmada na testa – Não, nem pensar. Não gosto daquilo. Ninguém pára quando vê uma luz cinzenta ou abranda à luz azul – reiterou, convicto.
- Cinzento? Azul? – balbuciou Jonas, confuso – É vermelho, amarelo e verde, Excelentíssimo. Não será Vossa Excelência daltónica?
- Não te admito, Jonas! – insurgiu-se, de órbitas oculares abertas, levantando-se com um assomo raivoso da cadeira, agitando os punhos fechados no ar – Já aturei muitas coisas tuas, desde andares a dormir com a minha irmã na rotunda em frente ao mercado e teres escondido os meus peluches com guizos da Chicco na célebre reunião da Assembleia Municipal de Janeiro, aquela em que decidimos colocar uma rotunda no posto de abastecimento a seguir à rotunda que dá acesso ao centro da vila! Tudo bem que as cores não são o meu forte, mas agora isto…
- Mas, Excelentíssimo, “daltónico” é mesmo essa incapacidade de discernir cores, pode confirmar no dicionário… – tentou acalmar Jonas.
- Ah é? Mostra-me um dicionário! – olhou para o lado, mas não tinha nenhum livro nas estantes que vestiam as paredes. Apenas cubos do Noddy por entre algumas bonecas insufláveis com orifícios proeminentes e brindes dos pacotes de batatas fritas – Vai à biblioteca buscar um! – ordenou.
- Não posso, Excelentíssimo – penitenciou-se Jonas, cabisbaixo – Estão a construir uma rotunda no átrio central da biblioteca. Está fechada para obras.
- Hmmm… Está bem – desculpou o presidente, acalmado, dando o benefício da dúvida ao vereador – Então as luzinhas em pé são a melhor solução neste caso, dizes tu? – falou, de mãos apoiadas nas ancas em frente ao vereador.
- Sim, Sr. Doutor. Acreditamos que sim – respondeu Jonas, meio a medo.
- Eu não sou Doutor, Jonas! – corrigiu, sonoro – Devias saber que uma pessoa com este sentido de planificação rodoviária só pode ser Engenheiro, Jonas. Eu sou Engenheiro! Eu “engenho” “engenhocas” que “engenham” de felicidade a vida das pessoas, ‘tás a ver?!? – vociferou ao pobre Jonas.
- Sim, Excelentíssimo Senhor Engenheiro. Dizia eu que um semáforo seria bem vindo... só um pequeno semáforo erecto verticalmente… nem sequer seria preciso colocar um grande semáforo a arquear sobre a via… as pessoas passam a mais de 50 km/h e, pumba!, param logo ao sinal vermelho…
- Vermelho?
- Desculpe, Excelentíssimo… para si é cinzento… apenas desta vez… e resolveremos os problemas de velocidade e atropelamentos junto ao matadouro…
- Hmmm… – pensou ele, perigosamente perto de Jonas – Pode ser, convenceste-me – admitiu o presidente, apoiando a mão direita no ombro do assustado Jonas.
O vereador sorriu, satisfeito, elogiando o autarca pela sábia, e difícil, decisão. Mas o edil máximo, quando Jonas se preparava para sair do gabinete, limpando a testa com um lenço de seda, alertou:
- Olha lá, ó Jonas… Estive aqui a pensar com os meus botões e acho que precisamos de mais uma rotunda junto ao hospital, para que as ambulâncias não se percam às voltas à procura das urgências. Que tal?
- Hã… – Jonas fora apanhado. Não podia deitar todo o seu esforço a perder, por isso preferiu aceder com um gesto corporal de conivência – Porque não, Excelentíssimo, porque não? – sorrindo, nervoso – Vistas bem as coisas, oito rotundas à porta das urgências não são nada, fazem falta mais uma ou duas rotundas para meter as ambulâncias decididamente tontas… isto é, quero dizer – embaraçado com o seu descuido – as ambulâncias decididamente no caminho seguro e rodoviariamente adequado até ao destino que se quer directo. Muito bem, muito bem…
- Não te disse, grande malandro!... – sorriu o autarca, regozijando-se com a perspicácia enquanto se acostava novamente na cadeira – Agora vai lá à tua vida, que eu fico aqui na minha.
Enquanto Jonas fechava as portas do gabinete, coração em fanicos e ideias de enviar currículos para outros organismos públicos, o presidente dobrou-se sobre a sua secretária a brincar com os carrinhos, na larga e imponente mesa de madeira, criando rotundas de papel com os editais e decretos por assinar.
- Vruuuum! Vruuuum! “Apanho-te na próxima rotunda, seu assassino!” – dizia para si mesmo. Os bonecos, se sentissem, provavelmente vomitariam de tanto rodopio.

Sem comentários: