sexta-feira, julho 28, 2006

O Rico Pobre



(Quadro de Henri Rousseau - 1907)


Ainda consigo lembrar-me de algumas coisas engraçadas. Dei uma vez com ela toda nua, apenas com a toalha embrulhada na cabeça, a perguntar-me se tinha os números do Totoloto. Não lhe disse para se vestir, porque gostava do que via, e também não fui capaz de lhe dar os números – porque me eram totalmente indiferentes perante tal paisagem. Ela fechou a porta na minha cara deslumbrada, patética de tanto deleite visual. Sangrei fascinado do nariz.
Apanhei o autocarro para a praia. Ao meu lado, desfiles de cabriolets e todo-o-terrenos cheios de criançada feliz e um adulto bronzeado a conduzir, com os imprescindíveis óculos escuros da moda. Ela, debaixo de uma axila brasileira, beliscada pelo calor, bem me recordou, de cabeça quente como o tempo:
- Tu já viste o tempo que perdemos nesta porcaria de viagem? Já reparaste que me doem as costas de andar a carregar o chapéu de sol para trás e para a frente? Tens de arranjar um carro!
Não podia arranjar um carro. Tinha de comer primeiro e a fabriqueta faliu. O subsídio pecava por escasso.
Eu não queria saber de Totolotos. Ainda hoje borrifo-me no Euromilhões, a evolução globalizada desse vulcão de ilusões. Há quem faça disso uma procissão de fé, aquela romaria fanática de sexta-feira à tabacaria mais próxima, as cruzinhas no papel de uma forma que todos julgam programada. Acreditam no sistema que o vizinho lhes transmitiu, mesmo que o vizinho esteja ainda na penúria. Entregam-se com devoção àquilo que julgam ser o caminho mais fácil para a felicidade.
Fácil, fácil, é ficar aqui à beira-mar, bebendo o sol, recebendo o fresco da água, cativando o iodo que tanta falta nos faz. Não me preocupo quando chega o odor do chouriço da velhota de preto ao lado, ou mesmo quando a criança despida da frente urina na areia no meio dos meus pés, sem que os pais, distraídos a despejar beatas na areia, reparem na menina. Mas ela preocupava-se. Demais.
- Que horror, que gente sem educação nenhuma! Quando é que vamos a uma praia como deve ser? Quando é que saímos da Caparica?
Nós sair, até podíamos sair; mas não para o Algarve, fazendo companhia a craques de futebol, muito menos para o Brasil, que apenas provamos via telenovelas. Queria levá-la a conhecer a natureza.
- Um safari no Quénia?
Não, uma aventura pelos parque nacionais. Até o Gerês estava acima donde poderia ir, mas podíamos visitar a Serra de Sintra ou o Vimeiro. Que tal um Jardim Zoológico para começar?
- Estou farta! Vai dar amendoins ao elefante sozinho!!!!

Foi muito giro. Ela voltou para a Praça de Espanha sem eu saber como nem quando. Eu fui para um parque qualquer ao anoitecer. Havia água, apetecia-me fechar os olhos. Comi uma bifana numa roulotte e arrotei mostarda. Bebi uns copos de carrascão barato. Ela voltou. Vejam como: envolta pelas sombras, evasiva, misteriosa. Delicada. Sussurrou-me:
- Este parque é todo nosso. Para todo o sempre. Ganhei o Totoloto.
Ouvi melodias que deviam provir de uma flauta por detrás dos arbustos. Disse-lhe que não queria saber de dinheiro, de ter parques; quis sentir a música a aliviar-me a azia no estômago e ela a falar-me num registo não resmungão. Fazia muito tempo que ela não se dirigia a mim assim. Tranquilizei-me com a penumbra, não com o pensamento dos bolsos cheios. Até aves estranhas e coloridas surgiram do nada para me felicitar, as plantas eriçaram-se numa festividade boçal. Eu só queria ver a silhueta dela. Imaginei que se tinha desnudado novamente. Só para mim. Isto vale por todas as riquezas monetárias.
Mas houve um guarda que me picou no peito. Estava deitado num sujo passeio desconhecido, debaixo dum poste de iluminação ferrugento e com uma garrafa de vinho partida ao lado.
- Levanta-te, vagabundo! Põe-te a andar ou vais dentro!
Levantei-me. E fui para dentro, mas da minha casa. Tinha mais um graffitti na porta. Ela desaparecera.
Ainda hoje as aves aquáticas parecem gostar de mim. Ela deve ter continuado a jogar no Totoloto, Euromilhões e Raspadinhas. Deve responder a todas as perguntas dos concursos televisivos. Deve sobreviver com expedientes, sonhando com o luxo. Deve perseguir o seu Rei Midas. E eu vou ao Jardim Zoológico dar amendoins ao elefante, enquanto não chega o Verão para um salto à Caparica.

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