quarta-feira, agosto 16, 2006

Isto Não É Um Cachimbo


(Quadro de René Magritte - 1928/29)
… e fez questão de enfatizar a sua certeza, como se estivéssemos a falar do mais assertivo dos dogmas.
Olhei para Reinaldo, embrutecido de espanto.
Será que estou a ficar maluco? Terei bebido demais? Estarei a sonhar?
Este é o meu conceito das coisas; observo a realidade e descrevo o que vejo de acordo com o que está instituído – isto é, um “cachimbo” é um “cachimbo”, porque se convencionou chamar-lhe isso mesmo, um “cachimbo”.
Reinaldo achava que não, e não o fazia por qualquer preciosismo artístico esboçado para irritar o vulgar indivíduo; simplesmente duvidava que o que se lhe deparava fosse um cachimbo e não admitia contestação. Tinha criado a sua própria teoria. Justificava sem problemas.
- Isto é apenas uma pintura de um cachimbo; não se pode fumar tabaco através daquilo que estou perante; e mesmo chamar ao engenho de madeira que permite fumar tabaco “cachimbo” será impor-me uma terminologia com grande dose de subjectividade criada por algum iluminado que resolveu criar os dicionários; eu prefiro chamar-lhe “odoratice” – ao objecto, não à sua representação gráfica.
Vamos por partes, Reinaldo.

Reinaldo não é maluco; pelo menos, não demonstra qualquer sinal de deficiência cognitiva, pois urde frases estruturadas, percebe a minha questão e tenta demonstrar racionalidade no seu evidente paradoxo.
É certo que isto, de facto, é uma pintura. Reinaldo é afinal um ultra-realista. Mais realista do que todos nós. Reinaldo não aceita representações da realidade. Reinaldo somente aceita a realidade. Estou a imaginar como seria Reinaldo resguardado em casa durante algum tempo, sem acesso ao mundo exterior excepto pela sua janela: todos os jornais que lhe colocassem sob a porta seriam puro lixo, pois dar-lhe-iam apenas quadros de uma realidade não constatável directamente; as fotografias que conservava nas gavetas seriam figuras puramente abstractas sem nenhuma relevância concreta, mesmo que elas retratassem a sua vida ao mais ínfimo pormenor; até as memórias, por mais fortes que fossem, seriam mero objecto cinematográfico, ficcional, desprovidas de consubstanciamento palpável; a sua realidade seria o marasmo dum quotidiano enjaulado entre quatro paredes e a simples observação da movimentação exterior – agora chove, agora faz sol, agora o carro passou, agora faz calor. Reinaldo vive sem passado nem futuro; vive de presentes momentâneos e está disposto a bater-se pela sua identidade factual contra esses iludidos que pejam o mundo – gente como eu. Reinaldo é um anarquista temporal. Esta filosofia permitir-lhe-á prosseguir com a sua estratégia de desacreditação daquilo que parece óbvio aos outros, pois não se deterá perante argumentos históricos ou cogitações de cenários eventuais. Ou é, e é-o agora, ou nunca foi nem será.
Reinaldo é contra o nosso sistema linguístico, presumo. Põe em causa que um “cachimbo” se chame “cachimbo”. Porque será? Poderá ser por não lhe soar bem ou por estar a ver qualquer coisa diferente. Esta última perspectiva atira-o para o limbo da mente – como podemos estar a ver duas coisas diferentes se eu estou aqui com ele, se temos exactamente a mesma definição para o que vemos e se ele reconhece tudo isto como verdadeiro? Como podem duas realidades perfeitamente coincidentes serem distintas entre dois indivíduos com a mesma percepção, ao mesmo tempo? É verdadeiramente absurdo. Reinaldo, queres ser mais surrealista que os mais surrealistas?
Acho que ele gosta de rebaptizar as coisas. Deve julgar-se suficientemente desenvolvido e importante para redefinir as palavras que ele não inventou. E aqui salta a vertente artística de Reinaldo para a frente dos nossos olhos. Reinaldo, o detentor da patente da “realidade absoluta”, pode então renomear tudo o que lhe apeteça.

Está tudo mais claro, Reinaldo. Sim, claro, isto nunca é um cachimbo. Nem nunca Sherlock Holmes fumou um. Porque Sherlock Holmes nunca existiu e porque só víamos o actor que o caracterizava num cinema ou numa revista – portanto, uma acumulação de virtualidades, uma soma de nulidades concretas. Cachimbos há-os em tabacarias. “Odoratice”… que raio de nome, Reinaldo. Porquê, Reinaldo? É o teu gosto pessoal?
- É aquilo que me lembro de dizer quando seguro este “odoratice”, este que tenho aqui na minha mão, dentro do bolso, quando o acendo, como agora – dando uma baforada veemente – Cheira-me a este nome. Mas amanhã poderá ser outra coisa qualquer. Os dicionários devem ser permanentemente actualizados mediante as experiências pessoais de cada um e há léxicos diferentes para cada um. Tem de ser assim.
Para Reinaldo, não há volta a dar. Eu não quero discutir mais. Julgo que sou o único amigo que lhe resta e para mim, pobre enfezado que tem memória do passado e uma visão romântico-virtual das coisas, dói-me ver Reinaldo a pregar solitariamente os seus ideais, incompatibilizado com o mundo normal das normais pessoas. Vou acenando que sim, embora sinta, com alguma pena, que Reinaldo caminha a passos largos para a insanidade total, tal como nós ainda a definimos.

2 comentários:

. disse...

Apoiado. O Reinaldo é louco. Surrealismos são interessante mas se se afasta da realidade para a alegoria da caverna, confundindo paradoxos semióticos com subjectividade, e representação ultra-realista com romantismo, só pode estar preso num mundo só dele, com verdades absolutas verificadas apenas por ele, de trazer por casa... Digo mais: o Reinaldo não percebe nada de cachimbos. E nisto lembra-me o Penicos, não sei porquê.

Rodrigues disse...

O Reinaldo, de facto, tem o seu quê de Penicos (com o qual mantenho uma relação aberta de amor-ódio). Mas, friso, ele não é maluco; aspira a ser maluco, no sentido diferenciador da restante mole humana, sem olhar a meios.
Contudo, enquanto vejo no Penicos uma sobranceria generalista, um gosto opinador por tudo e mais alguma coisa e um opiómano incorrigível, no Reinaldo vejo um especialista numa matéria concreta no qual ele não admite contestação. Isto é: Reinaldo não sabe de tudo, ele sabe tudo sobre algo em particular e borrifa-se no resto... mesmo se esse "algo particular" seja alguma coisa tão ampla como a realidade directamente observável.