terça-feira, agosto 08, 2006

Não Te Deixarei Morrer, Eládio Clímaco


Eládio Clímaco possui uma discrição assinalável, considerando o nome que está inscrito no seu B.I.. “Eládio Clímaco?”, pasma-se quem olha para o nome. “Deve ser um excêntrico”! Nada mais erróneo. Eládio é uma paz de alma. Um senhor da televisão. A RTP é a voz de Eládio, Clímaco é a imagem da RTP. E com isto, Eládio já está, com mérito, nos anais da História recente de Portugal.
Eládio tem o que muitos sonham ter, mas que poucos conseguem: uma carreira. Ele contém em si a galanteria típica dos anos 50 do século XX. Carrega um sorriso terno digno de um Clark Gable. Envelhece sem nunca perder a simpatia que o caracteriza. Clímaco transpira tradição e afabilidade.
Eládio bem que poderia olhar com desdém para sucedâneos seus bem mais extrovertidos, mas também claramente mais aparvalhados, tipo Jorge “Treinador de Bancada com os Azeites” Gabriel, José Carlos “Abichanado com a Mania que tem Graça” Malato e mesmo Fernando “Imito para a Elite” Pereira. Mas ele, na sua grandeza moral, não o faz. Eládio sorri antes com bonomia. Clímaco passeia a sua classe como locutor de programas do National Geographic, sereno e tranquilo, enquanto os outros fazem figuras questionáveis em anúncios e programas de qualidade duvidosa.
Atentem bem na figura de Eládio: sóbrio, elegante, cortês. Mesmo nos anos 70, nunca se lhe viu uma rebeldia maior que uma gola de pull-over timidamente subida ou uma patilhazinha levemente comprida. Olhávamos para Fialho Gouveia e era vê-lo fumar em frente à câmara; reparávamos em Carlos Cruz e lá estava ele com enormes óculos de lentes esverdeadas; víamos Luís Pereira de Sousa bronzeadíssimo e bigodudo na Feira Popular num Domingo de Verão. E Eládio, recatado, esboçava um sorriso de camaradagem, como que dizendo “isso não é para mim, meus caros; eu quero é partilhar o silêncio das águas com os animais, passear no bosque e trocar cartas de amor com a Ana Zanatti”.
Com Zanatti, Eládio protagonizou uma das maiores histórias de amor impossível do imaginário português dos anos 70/80 do século passado. Folheavam-se revistas a ver se encontrávamos algo que nos dissesse que Clímaco e Zanatti finalmente assumiram a sua adoração mútua. Víamo-los com tanta empatia a apresentar Festivais da Eurovisão e Jogos Sem Fronteiras que sempre pensámos que haveria algo mais nos bastidores. Mas faltou sempre aquela fagulha. Eládio e Zanatti acabaram por viver uma paixão bastante comedida – como se fossem actores de um filme romântico a preto-e-branco. A paixão construiu-se de troca de olhares e sorrisos cúmplices, por entre palavras cuidadosamente ditas e ao som de Carlos Paião.
Eram ambos de tal forma marcantes que se tornaram o blueprint para qualquer apresentador que se preze. A sua presença foi tão luminosa que, hoje em dia, medimos a qualidade de apresentação em forma de “Clímacos” e “Zanattis”. Por exemplo, Júlio Isidro ainda consegue ser “8 Clímacos em 10”, mas já Tânia Ribas de Oliveira apenas vai nas “5 Zanattis em 10”, faltando-lhe ainda um longo caminho para percorrer. Ai de quem tente pôr em causa esta escala de excelência locutiva.
Clímaco tentou, numa fase posterior em que Zanatti se distanciou para outras lides, formar um par com Ana do Carmo, uma ilustre desconhecida que sublinhou o início dos anos 90 com linhas de esperança. do Carmo era igualmente simpática e acima de qualquer suspeita. Mas Clímaco já desenvolvera rotinas inquebráveis com Zanatti. A mística com do Carmo apenas durou breves anos, ainda com os Jogos sem Fronteiras e na Arca de Noé, com os animais, uma grande paixão sua, como pano de fundo. Depois, do Carmo eclipsar-se-ia. Eládio persistiu, ciente que a sorte bafejaria os que são bons de coração, como ele.
E então, o advento da televisão privada retirou-lhe o tapete sob os pés. A concorrência implacável não concedeu espaço à sua imagem. Era urgente algo novo para os responsáveis e directores. Os Jogos sem Fronteiras desapareceram do espectro televisivo. Os Festivais da Eurovisão viram a sua credibilidade destruída aos microfones de Rui Bandeira e de outras personagens vergonhosamente foleiras. Friamente, Clímaco passou à Velha Guarda num instante. O seu coração podia estar dorido, mas a compostura e dignidade ninguém lhe conseguiu sonegar.
Restar-lhe-ia a locução dos mais variados programas. A sua voz foi adquirindo a sensibilidade do veludo e a sabedoria dos tempos com o passar dos anos. A sua influência atingiu o zénite nestes meandros da locução. E, mais uma vez, ouvimos Clímaco e Zanatti, um masculino, outra feminina, lado a lado. A ternura dos bons velhos tempos. Ambos a apresentar a vida na selva indonésia ou os caminhos perdidos do litoral alentejano. Agora, já ninguém consegue conceber um programa sobre a fauna australiana sem sentir a voz cuidada de Clímaco. Se conseguirmos, estamos a falar de imitações baratas. Não chegam sequer a “4 Clímacos em 10”.
Este ano, veríamos quão cruel foi o destino para o bom do Eládio. Estava como peixe na água, a apresentar o “seu” Festival da Eurovisão. Tudo parecia correr pelo normal. Já não havia a grandiosidade de, por exemplo, “Um Grande, Grande Amor” de José Cid, nem sequer a definição pop de “Waterloo” dos ABBA, mas as coisas também não estavam assim tão mal. Só aqueles finlandeses malucos pareciam destoar. Mas quando esses finlandeses, os Lordi, começaram a ganhar pontos atrás de pontos, Clímaco perdeu a esperança. Sentimos um homem destroçado nesse dia. Era ouvi-lo com desespero dizendo “Estes finlandeses vão ganhar, com certeza… mais 12 pontos da Suécia. A Dinamarca seguramente que vai dar 10 pontos na próxima votação”. O desalento era evidente. Eládio revelou, sem quaisquer pudores, todo o jogo de influências por detrás do Festival da Eurovisão, onde os vizinhos se pontuam reciprocamente com classificação máxima. Ninguém parece levar a mal, mas só Eládio abriu o seu peito à Europa.
Não estava certo, Clímaco. Aqueles horrorosos metaleiros finlandeses colocaram um ponto final no teu cândido sonho – a preservação do Festival da Eurovisão como baluarte da decência, longe das modernices exóticas e fiel à tradição de António Calvário, Manuela Bravo, Armando Gama e até Dora. Agora estás sozinho. O golpe foi forte demais, doeu-nos ouvir o embargo na tua voz, a tremura nas tuas mãos. Resiste, Eládio.

1 comentário:

. disse...

Uma figura indiscutível e cuja homenagem é nada menos que bem merecida. A minha memória mais reconfortada manda um forte abraço ao Eládio. Um tributo bem à medida do ícone. Parabéns! E o trabalho de design tem estado com um requinte do.