segunda-feira, agosto 14, 2006

O Cão Perdido


6:45.
- Está lá? Olhe, acabei de encontrar o seu cão.
- Como? – num registo claramente enramelado – Quem fala?
- Não interessa. Vi o seu anúncio e estou a ligar-lhe por causa do Dali, o labrador preto.
- Dali? – voz entrecortada por um bocejo – Nós já resolvemos esse caso há quase um ano… Obrigado pela preocupação, mas esse não é o nosso cão. O Dali está connosco… e está bem.
- Amigo, não me está a dizer que o cão que acabou de me urinar as jantes e defecar em cima da pasta do meu PC que inadvertidamente deixei no chão não é o seu cão…
- Receio que não…
- Como não? Ele parece-me “perdido”, porque um cão em condições normais não faz este trabalho; além do mais, no anúncio está a dizer “para ligar para os seus donos”, já que “quer voltar para casa” para “descansar”. Além disso, as expressões focinhais do cão indicam-me que se trata mesmo do Dali.
- Não pode ser – ouve-se um ruído de fundo que poderá ser o remexer nos lençóis – o Dali está agora bem acorrentado, não sai para a rua. E duvido que faça essas coisas que me disse. Onde você se encontra?
- Estou à porta do café Primavera em Aveiro. E quero que você assuma a responsabilidade pela porcaria que este cão fez!
- Ouça, são 6:45 de manhã e já lhe disse que o Dali…
- Mas acha que eu ando a gastar dinheiro do telemóvel que a empresa me paga a telefonar a estranhos para brincar? Já lhe disse que é ele! É preto, abana o rabo quando chamamos por “Dali”, é vagamente parecido com o pintor surrealista na porcaria irreconhecível que faz, conserva exactamente o olhar de inocente que aparenta na foto e quando lhe pergunto “tens mesmo 9 anos?” ele fica mudo, a arfar para mim – ora, quem cala, consente! E agora está a fazer-se à minha sandes de fiambre! Venha aqui ter, se fizer favor!
- Lamento, esse não é o meu cão. Há muitos labradores com a descrição que me fez. Passe bem.
- Você acha que eu estou a brincar, não é? É esta a educação que dá ao seu cão? Quer dizer, primeiro é anúncios à procura dele; agora, depois da porcaria feita, desresponsabiliza-se dos actos que ele comete! Não tenho culpa que não saiba ensinar o seu cão! Venha aqui ter, já lhe disse! Venha limpar-me as jantes e a mala do meu PC, que nem lhe consigo chegar perto!
Chamada interrompida.
7:00.
- Senhor do Dali?
- Você outra vez? Ouça, já não estou a achar piada nenhuma…
- Ai não está? Quem não está sou eu! E já lhe disse que não estou a brincar! Pois fique sabendo que o seu cão babou-se para dentro do meu galão enquanto você desligou-me o telefone na cara! E estive a correr atrás dele para apanhá-lo!
- Olhe, lamento muito, mas agradeço que não…
- Você agora vai ouvir-me… e bem! Quer fazer o favor de levantar o seu rabo da cama e vir buscar o seu cão? Eu nem quero saber de recompensas, só quero que me pague o pequeno almoço e limpe o que tem a limpar!
- Tenha juízo… esse não é o meu cão!
- Ai é assim? Pois bem, ouça lá isto – ouve-se um pequeno ruído, como se o emissor estivesse a fazer força, a arrastar algo pelo chão – Ó Dali, fala lá para o teu dono para ele reconhecer que és tu - há um pequeno barulho, não perceptível – Então, é ou não é?
- Não percebi nada. Já lhe disse que o Dali está aqui comigo, esse é outro cão…
- Vem aqui buscá-lo ou não?
- Não!
- Ai é? PUUUUUUUUUUUUUUUUUM!!!!! – um barulho ensurdecedor, quase que a ligação ia abaixo.
- Que… que foi isto? – o receptor parece assustado.
- Rebentei-lhe a cabeça com um balázio! Agora já não há cão para ninguém! Se quiser, venha cá buscar os miolos! Eu avisei-lhe!
- Você é maluco! Deu cabo de um pobre animal! – a voz emociona-se – Você devia ser preso!
- Agora está com medo, é? – num registo sarcástico.
- Eu… eu vou ligar à Polícia! Você está armado e é perigoso! – gaguejando.
- Amigo… acalme-se… você foi apanhado para o programa da manhã da Rádio Tótil FM!
- Hã? – expressão de total surpresa.
- Não se preocupe, não aconteceu nada de mais. Só disparei sobre um toxicodependente travesti e o cão vadio que o acompanhava! Isso do Dali era falso, foi só um truque para captar a sua atenção! E foi difícil, você ainda desligou e tal…
- Mas você matou mesmo alguém? – ainda sentindo preocupação.
- Eh pá, matei um desses vagabundos que ninguém se importa de ver morto mais o seu rafeiro cheio de pulgas… Você importa-se?
- Quer dizer…
- Não diga mais nada! Só por participar, você acabou de ganhar um vale de compras no valor de 250 euros na loja Pagabem, em Ílhavo! E que tal?
- Eh, pá, nada mau! Só por participar?
- Só por participar! Passe nos estúdios com a senha que lhe daremos a seguir e é só levantar o talão! Um abraço a todos aí em casa… e também ao Dali! Esqueça a história da Polícia, está bem?
- Eh, pá, está bem! Obrigado e bom dia!
- Bom dia.
18:30. Após algumas queixas pelo mau cheiro, as autoridades vêm finalmente recolher o cadáver do toxicodependente que jazia ao pé do café Primavera. Do referido rafeiro que o acompanhava não há sinais, nem tão pouco vestígios de sangue. Supõe-se que se tenha perdido.

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