segunda-feira, agosto 28, 2006

Gente Gira

(Quadro de Pablo Picasso - 1908)

Ali está Filomena. Filomena Garcia de Mello e Souza. Atente-se nestes aparentes pormenores, nenhum deles por acaso: o “de” entre Garcia e Mello; o “e” entre Mello e Souza, os dois “ll” de Mello e o “z” de Souza.
Não, ela não é brasileira, mas podia, de tão trigueira que é a pele; não, ela não escreveu mal o seu nome, porque isso seria inadmissível; ela é, apenas, uma figura de prestígio. As raízes deste nome, comenta-se por aí, derivam de antepassados espalhados pelos ramos mais obscuros da sua frondosa árvore genealógica. Será da família dum grande banqueiro? É possível. Será afilhada dos grandes industriais? Quiçá. Terá sido casada com algum descendente de sangue azul? É bem provável que sim. Azuis são os seus olhos, grandes órbitas penetrantes de tez marítima compradas ao melhor oftalmologista, bastas vezes eclipsadas por detrás dos seus volumosos óculos escuros.
O nome não devia interessar. O que é o seu nome quando comparado com a sua inefável mania de viver bem, divertida, numa discoteca a balançar as ancas, numa soirée a passear o seu glamour, numa apresentação pública a emprestar a sua vivacidade? Não devia ser nada, pessoas assim falam por si, imunes a identificações redutoras. Mas lá que dá jeito, dá. Nem que seja para colocar o pé na porta. Valha a verdade que todos aqueles pormenores no nome abrilhantam de sobremaneira o seu cartão de visita. Todos desejam possuir esse cartão, exibi-lo com orgulho aos amigos.
Ao seu lado, está Mu. Uma vaca? Ora essa, claro que não. Apenas Mu. Ninguém sabe qual o verdadeiro nome desta relações públicas. Outra vez com a história dos nomes: que isso interessa? Digna de relevo é a sua afabilidade, simpatia, disponibilidade. Poderia queixar-se da lufa-lufa do seu preenchido dia-a-dia, mas torneia o stress com sonoras gargalhadas de champanhe na mão. Mantém uma pele impecavelmente protegida por dezenas de loções dérmicas. A sua silhueta é invejável para uma mulher a ultrapassar a alta velocidade a barreira dos trinta anos. Usa e abusa da sua lista de contactos e amizades para deixar-se retratar nas mais variadas situações com diversas figuras públicas, dando largas à sua ampla fotogenia. Assina colunas de opinião de interesse quase patrimonial para a Humanidade numa revista para aspirantes ao sucesso. Conheceram-se alguns romances entre ela e alguns dos homens mais cobiçados da nossa praça, qual deles o mais fugaz. O único defeito que ela se auto-aponta em questionários sobre a sua personalidade é, invariavelmente, “a teimosia” – a teimosia de querer que tudo corra na perfeição, claro. Com Mu, ou sai tudo perfeito ou temos birras.
Ao canto, aparece Jessica Marlene. Escultural, epíteto de mulher fatal escarrapachado nos implantes de silicone e nas injecções de botox que ostenta descaradamente. Ex-modelo, ou ainda modelo, não se sabe ao certo, actriz, escritora de livros sobre o zen espiritual e o combate à celulite, cultiva a vida calma dos grandes iates nos mares cálidos das Caraíbas ou das praias de remotas ilhas gregas. Notabilizou-se ao serviço de uma marca de iogurtes líquidos com sabor a chicharro, com um anúncio onde marinava os corações com um andar ousado e bamboleante para depois fervê-los com um sorriso vermelhão e um piscar de olhos irresistível. Está sempre aberta a novas experiências, de preferência pagas por algum patrocinador, pois não se lhe conhecem ocupações fixas que não a frequência de luxuosos SPAs. Jovem, não naturalmente loura, mas cuja alouração lhe fica tão bem, cultiva ainda o gosto pelas artes e cultura. Qualquer delas. Dela escreveu-se “adoro degustar Kierkegaard a ouvir Canta Bahia” ou “quando vou ao Louvre opto sempre pelos tons magenta para as unhas da Gemey”. Envolveu-se com outro modelo, a sua relação gastou muita tinta nos jornais, mas agora tudo acabou, sem ressentimentos, que Jessica não perde tempo com isso. O seu novo parceiro é o promotor da inédita iniciativa que reuniu Filomena, Mu e a própria Jessica.
Esta é a iniciativa: juntar três figuras femininas para recolher fundos de apoio a uma família carenciada de Sernancelhe que possui dezasseis filhos, todos a viverem numa pocilga adjacente à casa. Se tudo correr bem, será construída uma casa nova suficientemente grande para a família. Se tudo correr mesmo bem, a casa será tão grande que até os porquinhos viverão na casa. Garantida está a publicidade a uma causa tão nobre, tão cívica, tão desinteressada como esta. Só alguém tão ilustre como estas três donas estaria ao alcance desta missão. O lema é: “Tirem-me de ao pé dos porcos, c*****o!”.
O autor desta ideia, o sempre empenhado namorado de Jessica, é um argentino, Pablo Alberto Zaurini, ou só PAZ. Inteligentemente, PAZ preferiu o retiro do anonimato, como é seu apanágio. PAZ descobre, nunca é procurado. PAZ reúne e faz actuar, pensa e faz nascer coisas bonitas. Trabalhar com PAZ é uma tranquilidade. Bem parecido, multifacetado, PAZ é desejadíssimo. Nunca comprou guerras, este PAZ. PAZ escolhe tudo a dedo. Diz-se que PAZ está para a vida social como o seu conterrâneo Maradona está para o futebol. Viva PAZ, há tanto tempo radicado em Portugal. Os portugueses olham para PAZ e reconhecem como ele é brilhante.

E por falar em Maradona, reparem nesta foto:


Se observarmos as caras destas jovens, percebemos que o seu apelo é verdadeiro. Eis uma má trip, um charro de caldo Knorr, um chuto de gesso. Elas (e ele, discretamente ao canto), disparam-nos lúgubres olhares polvilhados com as costumeiras olheiras e avisam-nos com uma sinceridade tal que fazem corar qualquer Filomena, perder o sorriso a qualquer Mu e despertar comichão em qualquer Jessica. No vão de uma escada, estas jovens uniram-se em prol de um novo sentido para uma vida que lhes corria tão sombriamente como o semblante que transportam, qual cruz pesada às costas. Juraram deixar para trás as barracas e as filas aflitivas junto ao sítio de troca de seringas. Fumam maços de tabaco atrás de maços de tabaco e, enfim, um ou outro copo de cerveja, na esperança que haja algum laivo de alegria escondido por detrás de uma garganta seca de fumo ou de álcool. São sérios como um bloco de granito espetado à frente dos nossos narizes. Mostram que não há nada de alegre num ressacado, nem sequer o travo de alguma memória de efémeras euforias sentidas.
PAZ reparou neles. Fê-los capa de revista. Tornou-os públicos. Que lindo, jovens degradados em pé de igualdade com Filomenas, Mus e Jessicas, na mesma revista, aqui está a beleza dos tempos modernos. PAZ deu-nos esse prazer, o de tudo tornar “público”, igual para todos, como se alimentasse uma enciclopédia do social e a estendesse a todos os níveis. PAZ imitou a máxima de Warhol sobre os “15 minutos de fama” e concede espaço a tudo que detenha algum fundo de emoção. PAZ, o portador do verdadeiro espírito democrático, tornou-os equivalentes a uma elite. Uma elite desgraçada.
Não serão, afinal, todas as elites umas desgraçadas, expostas que estão assim, publicamente? Bem, elas lá continuam a ir com PAZ.

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