domingo, agosto 06, 2006

Crispim



O gato foi lamber-lhe a cara pela manhã, mal o sol se levantou. Deu duas voltas por cima do colchão de água, soltou um ligeiro miado e foi anichar-se junto do vaso no corredor. Crispim lá acordou, passando a mão pelo cabelo rapado, coçando o tronco nu sob o lençol branco, observando com olhos cerrados a luminosidade que raiava pelas aberturas dos estores. Meio zonzo, cumprimentou o gato com uma festinha na cabeça e entrou na casa de banho. Apoiando uma mão sobre o mármore claro do lavatório e passando com a outra mão sobre a pele junto ao queixo, concluiu que teria que dar um retoque na sua pêra. Colocou um CD de uma colectânea de êxitos do disco sound no leitor e retornou aos lavabos para lavar os dentes. Depois, ligou a máquina de barbear e eliminou todas as pilosidades que cresceram durante a noite, como ervas daninhas sobre uma cara que se queria aprumada, esteticamente desenhada de forma a satisfazer o seu desejo de asseio e cumprir todos os parâmetros do seu conceito de beleza moderna. Enquanto os Pet Shop Boys exortavam os russos a irem para o oeste, iludindo-os com promessas de vida boa, vida pacífica, o gato higienizava-se com a sua língua e Crispim espalhava cuidadosamente a sua gama de cremes e loções para a pele, para os olhos, para os lábios, para o cabelo, uns em forma de bisnaga, outros no corpo de um spray.
Na cozinha, experimentando os seus chinelos Pierre Cardin na pedra lisinha e impregnada com uma fragrância a framboesa, abriu uma revista sobre decoração. Colocou o canecão sobre a mesa e despejou o leite para cima dos corn flakes estaladiços. O gato encostou-se à perna depilada de Crispim, mas este ignorou-o enquanto lançava a colher à boca com os olhos postos num magnífico candeeiro sueco. Limpou os cantos da boca cuidadosamente com um pano. Pôs a caneca na máquina de lavar louça. Vaporizou as plantas na marquise ao som de Earth, Wind and Fire. Mas quando se olhou satisfeito ao espelho com o seu novo anel já cantarolava Boney M.. Pensou em ir ao supermercado comprar agriões para sua salada. Ajeitou o brinco brilhante na sua orelha e endireitou os óculos escuros na sua cara. Certificou-se que levava todo o lixo para o caixote na rua.

Crispim era gay. Homossexual. Bicha até ao tutano, paneleiro desenvergonhado – embora isto não fosse bonito de se dizer. Não enganava ninguém. Havia que pôr os pontos nos i’s, era uma florzinha da pior espécie que adorava ser penetrado por trás por belos marinheiros. Mudava regularmente de parceiro, sem nunca se estabilizar. O seu sonho era um broche por noite – ou, como referia nas revistas, “ando à procura do amor como qualquer pessoa normal”. Só que Crispim não era normal, era demasiado gay para ser normal, e sabia-o. Era puramente gay, no sentido mais perverso do termo. Maricas, mariconço sem reservas. Aquelas falinhas mansas de desmistificação do protótipo gay, como dizer que “somos seres perfeitamente comuns, apenas com níveis de sensibilidade inusitados para um homem, mas com capacidade de viver e sentir como os demais”, não se revestiam de sentido para Crispim. Ele queria extremar as possibilidades carnais do seu corpo até aos mais ousados limites juntamente com outros da mesma igualha. Qual sensibilidade, quais manifestações exóticas com drag queens à mistura, ele queria era curtir da maneira mais física possível. E por aqui se explicava o enorme prazer de ser gay.
Mas Crispim era rico, famoso, não podia ser um veado como os outros que se metiam em bicos de pés para alcançar o estatuto social de minoria. Ele já o detinha, como bênção não pedida. E como não conseguia disfarçar o óbvio que era a sua efeminada figura, reconheceu desde cedo as suas preferências sexuais – “homens peludos e fortes, que lhe fizessem rir e que apreciassem arte colorida, de preferência” – e assumiu desde logo um discurso de normalidade perante a opinião pública. Isto é, aos olhos de toda gente, Crispim afirmava que era um cidadão normal, cumpridor, sem desejos especiais por sexo, disposto a ajudar todos, cooperante com todas as outras minorias, respeitador de todos os direitos, com uma leve tendência vaidosa, mas perfeitamente equiparável com um vulgar homem. Porém, Crispim sabia que tudo era mentira. Mentia com todos os dentes. Era um hipócrita convicto – teria de sê-lo, se não quisesse ser rotulado de “maricas sem vergonha”, que ele no fundo sabia que era, mas que não queria parecer para os outros. Na verdade, ele fugia aos impostos, por fazer sexo oral ao chefe da repartição de finanças, detestava os ciganos, vivia sozinho apenas porque não conseguia manter um parceiro por mais que uma semana, arte para ele era conseguir dar conta de um batalhão de bombeiros de um só fôlego, borrifava-se para quem via em dificuldades, porque difícil, difícil, é levar com um pénis negro avantajado pelo recto acima (até chorava de dolorosa felicidade). E, mais que tudo, detinha um poder de influência espantoso, inalcançável a qualquer um, importante para facilitar toda a sua charmosa mensagem e show-off. Ele era o líder do misterioso lobby gay, o tal que se fala por aí.

Naquele dia, iria receber na sua casa uma jornalista para mais uma reportagem ao homem do momento: Crispim, ou seja, ele próprio. O paradoxo do modelo de homem ser um gay. Bem, isso pouco interessa no século XXI. Os jornalistas eram seleccionados a dedo por Crispim: não podia dar-se ao luxo de conceder declarações a qualquer um. Todos tinham de ser coniventes com a sua estratégia de manipulação de imagem, de modo a que o seu poderoso lobby ganhasse corpo na sombra. Exemplos? A escolha do primeiro-ministro, do presidente do conselho de administração daquela empresa multinacional, o futebolista revelação do Campeonato de Juniores, a guerra no Médio Oriente, a crise de petróleo, as florestas amazónicas, o novo episódio do Noddy,… tudo passava por ele. Faz calor? Se Crispim quisesse, o tempo arrefecia. Falta-te um emprego? Queres ser empregado aonde? Precisas de um creme depilador? Crispim criava um exclusivo, se quisesse, junto dos mais renomeados laboratórios franceses. Queres ser conhecido? Ele arranja-te contactos com figuras famosas do jet-set. Procuras novas experiências? Vira o teu cuzinho para o Crispim e o futuro ser-te-á risonho.
A jornalista surpreendeu Crispim a mastigar os agriões. Crispim engraxou a jornalista, em sinal de cortesia.
- Bem, a sra. Alice é bastante famosa, lembro-me de ter entrevistado Saddam Hussein, Gorbatchev, Mick Jagger e Floribella… e foi você que esteve junto ao Pinto da Costa quando o carro dele explodiu, não foi?
- Não, essa foi a Alice e ela está com uma incontinência avassaladora, não pôde vir. Eu sou a Eduarda, substituta dela, e lembro-me de ter sido picada por mosquitos quando cobri a Ovibeja do ano passado, que foi a minha coroa de glória jornalística. Diga-me, você gosta de pegar de marcha atrás, se me compreende…
- Como? – engasgou-se Crispim, com suores frios a lavarem-lhe a fronte – Ouça, as regras são claras, não vamos levar a conversa para o lado sexual, senão nunca mais falo à sua revista… a Alice sabia bem disto, não lhe disse? – avisou, agastado.
- Ah, sim, claro… Nada de falar de homens de cabedal nem em paradas gay…
- Sim… Eu sou perfeitamente normal, não alinho nesses espectáculos decadentes e chocantes. É possível ser-se gay sem cair em lugares comuns e sem ser kitsch. Agora, não é possível ser-se gay sem…
- Um belo vibrador na mesa de cabeceira?
- Não! – escandalizou-se Crispim – Eu ia dizer, sem respeito mútuo e entendimento… De certeza que você compreende como deve ser conduzida a entrevista? Nada de referências insultuosas! – voltou a avisar, de uma forma mais acintosa.
- Claro, claro… Vamos então falar de tamanhos. Qual é o tamanho ideal de pénis para si? Para mim, 20 cm são suficientes, mas…
- Chega! Fora! – Crispim expulsou Eduarda de casa, bruto e indelicado – Você há-de receber o castigo que merece! – e Crispim, entre muitas outras qualidades, cumpria rigorosamente o que prometia. Suspirou quando fechou a porta e foi medir a sua tensão, nervosíssimo que estava.
Soube-se que Eduarda nem sequer irá à Ovibeja este ano; com sorte irá cobrir a chegada das andorinhas à Beira Alta pela Primavera. Crispim cancelou a assinatura de revista, apesar de todas as desculpas formais enviadas pelos redactores e pelas coberturas muito favoráveis feitas a Crispim nas várias convenções sociais em que esteve presente. Crispim etiquetou a revista de “intolerante e homofóbica” e a revista teve uma quebra brutal nas vendas. E se um dia destes notarem que falta a luz apenas na vossa casa durante várias horas, pensem bem se não gozaram com Crispim quando o viram na rua com uma camisa de alças verde berrante a passear o gato pela trela. Sim, Crispim, o gay aparentemente despretensioso que lidera o lobby gay, paneleiro de primeiríssimo grau.

2 comentários:

Anónimo disse...

eu acho muito manneira essa história sobre cripim ...
é bom saber que meu sobre nome é famoso...
xauzin!!!!!!!!!!!!

Rodrigues disse...

Caro anónimo: tenho optado por nomes pouco vulgares para os nomes das personagens das minhas ficções. Crispim é um nome pouco vulgar nas minhas paragens e nada tenho contra Crispim ou qualquer outro nome... desde que sejam invulgar...
Portanto, lamento desiludi-lo...mas Crispim foi escolhido precisamente pelas razões contrárias àquelas que esperava!