sexta-feira, agosto 11, 2006

Algures Entre o Céu e o Inferno


Morrison (M) – Man, és tu quem eu penso que tu sejas?
Hendrix (H) – Eh, pá, lá vem este gajo… Jim, o grande poeta do século… há quanto tempo!...
M – Serás tu o Rei Lagarto? Cabelos feéricos, dedos de cristal enegrecido, dançando velhas canções índias no ventre dos lobos…
H – Mas qual Rei Lagarto, meu?! Sou eu, o Jimi! Qual é a tua? Estás a ressacar?
M – Jimi! Desculpa lá… estou mesmo ressacado. Estou a ficar alterado com a falta do néctar da inspiração.
H – Pois é… neste sítio não há nada que se beba. Mas tu foste sempre um maluco, não é da falta da bebida!
M – Haha, tens uma piada do caraças… deixa lá que tu e o teu estilo…
H – Ouve lá, e um acidozinho, tens?
M – Quem me dera, man, quem me dera… Voando alto sobre as chaminés, fazendo amor com os cometas dentro de uma juke-box…
H – Sabes quem é que eu vi no outro dia? A maluca da Janis.
M – A Janis? Ela curtia uma onda marada… Tem ácidos?
H – Não, pá. Ela está toda lixada… no outro dia estava toda stressada à procura de umas calças novas e de umas flores para o cabelo.
M – A vã busca do material… que é feito da espiritualidade dela?
H – Qual espiritualidade? Uma gaja que cantava blues a falar de Mercedes-Benz? Man, ela sempre foi uma bezana de primeira… Tiraram-lhe a bebida, tiraram-lhe a alma…
M – A alma, esse fluido místico encarcerado dentro de um corpo humano impuro, fétido…
H – Man, se eu visse o Kurt por aí, até lhe perguntava se ele nos orientava alguma droga que nos ajudasse…
M – O Kurt?
H – O Kurt… O Kurt Cobain, um puto lá da minha terra… Um gajo porreiro, um junkie de eleição, mas muita esquisito, fala coisas dispersas sem construir frases com nexo…
M – Eh, pá, não estou a ver quem é…
H – Não sabes quem é? Uma estrela quase tão grande como nós, ídolo das novas gerações…
M – Man, eu morri em 1971 em Paris, fiquei por lá, sei lá quem é o gajo…
H – Em Paris? Tu curtiste a França? Eu bati a bota em Londres, um ano antes. Londres… cena porreira, falavam a nossa língua… Acho que curti com uma ou outra francesa, mas nem percebi se ela gostou ou não… é só “amour, frou-frou, je t’ aime…”, sabes como é que é, um black a tocar guitarra excitava as gajas ao rubro…
M – Londres, Los Angeles, Nova Iorque, Paris,… tudo a mesma merda. Estive com gajas de todo o lado, criava-las na minha cabeça, se fosse preciso...Mas antes a beleza poética de um boulevard que a frieza arrogante do Big Ben… Devíamos ter destruído esses preconceitos urbanísticos, esses ditadores do espaço, esses ícones da subjugação… O espaço é livre, é uno, é nosso… mas quem é esse Kurt, afinal?
H – Eu também só o conheço por ser da minha terra, também nunca ouvi a banda dele… Aparece aí a murmurar de vez em quando… Faz barulho com a guitarra de uma forma espantosa…
M – Não quero saber de guitarras. A mim interessam-me as palavras, a expressão da dor, da euforia, do amor e do ódio que atravessa toda a mente dos homens… O sexo dos anjos e a fúria das águas de rios imaginários no deserto… E tu, quando é que deixas esse instrumento para te concentrares na essência infinita que é o sentimento humano expresso pelas palavras?
H – Man, a guitarra é a minha essência, a guitarra é a minha vida…
M – Ou a tua morte…
H – Ou a minha morte… Queres ouvir a minha nova malha?
M – Não, meu, deixa estar… Estou demasiado sensível para ouvir algo com atenção… O que é que vais fazer com esse Zippo?
H – Ia utilizá-lo para sacar uns sons espaciais da minha guitarra… e depois ia queimar a guitarra. Estou farto de encores e de tocar a “Purple Haze”…
M – Ah, a celebração… A rendição dos homens aos braços dos deuses… A festa inútil por gente inútil sem esperanças… nuvens de pó imensas que crescem dos desfiladeiros e nos entram pelo cérebro… giramos e tombamos nas catacumbas da matéria até apodrecermos eternamente…
H – Estás a chamar-me de inútil?
M – Não, meu, estava só a divagar… Estou com dificuldades em expressar-me sem recorrer a nenhuma droga…
H – Man, és um chato de primeira!... Só te consigo aturar quando estou alucinado… Como naquela vez em 1968, lembras-te?
M – Devia estar bêbado…
H – Estávamos os dois. Não queres reeditar esse momento? Passamos melhor o tempo…
M – O que é o tempo? Man, és tão alienado… prendes-te nesses conceitos relativos que não interessam às almas superiores… tu não tens tempo a perder nem tempo a ganhar… tu és o teu próprio tempo…
H – Desisto. Prefiro voltar a tocar a “Purple Haze”. Curte lá este som… Yeah, baby! Uhhhh… Yeah!!!
M – Avisas-me quando arranjares alguma droga? Eu snifo qualquer coisa que me devolva ao regaço dos deuses…
H – Sim, estou a ver que precisas de algo. Vai passando por aí, pode ser que tenha novidades… Deixas-me continuar a explorar sons na minha guitarra sossegado? Não queres mesmo ouvir?
M – Vai, continua lá na tua experiência. Se sentires o útero da mãe natureza nas cordas da tua guitarra, eu quero estar aqui para ver…
H – Já estive com ela muitas vezes… tens é estado distraído… Jim, estás mesmo em baixo.
M – Em baixo? Eu julgava que estava em cima…
H – Man, tu próprio disseste que o tempo é relativo; se o tempo é relativo, porque o espaço não há-de ser também? Em baixo ou em cima não interessa, nós somos o universo.
M – Boa, man, essa foi boa. Apanhaste-me.
H – Estás a ver? Também não sou assim tão limitado… Fica aí um bocado a olhar para o infinito ao som da minha guitarra, as coisas hão-de aparecer naturalmente…
M – Então fico… Que mais podemos fazer?
H – Nada. O que podíamos fazer já foi feito. Agora só temos de ficar por aqui.
M – “Temos”? Por quê? Tu sabes?
H – É uma intuição, como todas as outras. Não tentes saber pelas tuas palavras.

2 comentários:

. disse...

O Morrison era(é) um poeta. Mas lá está, as palavras só chegam até certo ponto. Depois vêm as drogas.

. disse...

E "Cabelos feéricos" é uma excelente expressão.