quinta-feira, junho 07, 2007

Os Profissionais da Ajuda

Naquelas distracções diárias, Firmino abandonou o seu livro em cima de uma máquina de pagamento, das muitas do parque de estacionamento de uma grande superfície comercial. Dois indivíduos nas imediações aperceberam-se do sucedido. Pegaram no livro e chamaram por Firmino, antes que este alcançasse a viatura.
- Senhor! Ei! Ó chefe!
Firmino voltou-se e imediatamente reconheceu o seu lapso. Agradeceu pela atenção alheia.
- Muito obrigado – e, dito isto, encaminhou-se de novo para o seu automóvel.
Os dois indivíduos ficaram perplexos, entreolhando-se com admiração, espanto e, lá bem no fundo, indignação.
- Mas o que isto, pá? – soltou o mais alto dos dois. Descrevamos a personagem: Aurélio Flexiseguro, natural do Fogueteiro, idade incerta, 81 kg., 184 cm., tem namorada e gosta de tratar de peixes. Sabe confeccionar maravilhosamente Bacalhau à Gomes de Sá.
- Este gajo passou-se! – aquiesceu o outro. Não descrevamos esta personagem, não vale a pena. Este é somente “o outro”. Pronto. É só isto.

Não, não digo mais nada.

Já disse que não vale a pena. Ele é “o outro” e mais nada. É um tipo perfeitamente normal.

Não há nenhum mistério. Descrevi o Aurélio e este não me apetece descrever, só isso. Não há nada de mais com isso. Já chega.

Não, não estou a fazer birra. Não o descrevo.

Ponto final.

Vamos continuar com a estória?

Não sei se devo escrever “história” ou “estória”… Adiante.
- Ó amigo! – clamou o outro.
Firmino virou-se outra vez, pensando que se esquecera também da caixa de preservativos com sabor a morango em cima de um sítio qualquer. Ou dos comprimidos para a memória, talvez. Quais preservativos? Ele precisava de preservativos? Para quê? Ele nem gostava de morango… Esperem aí: e seria ele a chupar o pedaço de látex? Como assim? E que comprimidos? Teria ele problemas de memória? O que quereriam aqueles dois?
- Então como é que isto, chefe? – questionou Aurélio, retoricamente, abeirando-se de Firmino. Este, por seu turno, olhou em interrogação a dupla.
- Isto o quê?
- Isto o quê?!? – repetiu, num tom mais acintoso, o outro – Então mas ainda tens a lata de perguntar, pá?!?
- N… Não estou a perceber… - perturbado, Firmino não percebia patavina – O que aconteceu?
- O que aconteceu foi que te fizemos um favor agora mesmo, ou já não te lembras? Estás esquecido, é? – prosseguiu, num registo muito retórico, Aurélio, gesticulando com movimentos vigorosos.
- Vocês também encontraram os preservativos, foi isso? – arremessou Firmino, numa ténue esperança de ter acertado em cheio no submarino. Mas isto não é batalha naval. Sim, não há porta-aviões em “T” nem barcos de três canos numa folha quadriculada. De qualquer forma, foi em cheio na água, chapa de pança dilatada pela cerveja em esplanadas à beira-mar no Verão na parede do mar, em choque directo com ondas impregnadas de sedimentos minerais diversos nas praias do barlavento. Onde é que ia Firmino? Ah, na cerveja na esplanada… não!, nos preservativos, nos preservativos é que ia.
- Preservativos? Ó amigo, tu não estás lá muito bem, pois não? Mas nós não queremos saber disso, nós queremos é que tu nos agradeças como deve ser, ‘tás a perceber? Preservativos… pfff! – enojou-se o outro, desagradado com a petulância idiota de Firmino.
- É mê’m’isso, chefe! Um agradecimento como deve ser. Afinal de contas salvámos-te o livro… - e Aurélio, após reparar no livro que Firmino ainda agarrava nas suas mãos, retirou-lho bruscamente da sua posse – E vê lá tu, o outro, que o livro até nem parece muito mau. Já viste, o outro?
- Qual outro? – perguntou o outro. Aurélio deu largas à exasperação que começava a ferver no seu sangue:
- O outro és tu, animal! Eu não tenho culpa que nem te tenham descrito como deve ser! Não te estava a perguntar pela opinião de outro livro qualquer, estava-te a perguntar se já tinhas visto este livro que eu tenho aqui, que é “Salazar e Maradona Partilham Um Risco de Coca – Um Conto Infantil”, da Editorial Vereda Tropical. Um livro jeitoso…
- Eh, pá, esse ainda não. Mas por acaso já tenho vindo a reparar que a Editorial Vereda Tropical anda claramente a tentar recuperar o terreno perdido no segmento infanto-juvenil… ainda no mês passado, editou a colectânea das tiras de banda-desenhada do João Baptista-Morgue, aquela do Capitão Vasilhame, um hipopótamo assassino residente no porto de Brugges. Muito bom, especialmente nos acabamentos, que incluem uma capa inteiramente produzida com restos de pele de criança vietnamita e sangue verdadeiro dum wombat australiano nas ilustrações das páginas centrais. Foi uma pedrada no charco, não tenho dúvidas.
- Muito melhor que o Noddy – assentiu Aurélio.
- Ah, doutra galáxia… - quantificou o outro. Firmino quis intervir:
- E vocês deviam ter lido o livro “As Mil e Uma Peripécias do Ratinho Peidinho”, é só rir do princípio ao…
- Está bem, ó amigo. Já vimos que prezas o teu livro. Então ainda nos dás mais razões para não compreendermos porque é que tu não nos agradeceste à maneira…
- Mas eu agradeci!... Disso eu lembro-me! – verbalizou Firmino a sua defesa, consciente de ter cumprido todas as regras da boa educação. Mas e se ele deixara os preservativos ao alcance das crianças? O que fariam elas com o achado? Deitariam os preservativos pela sanita abaixo? Reutilizariam os preservativos como balões de água? Aproveitariam a oportunidade para debutarem no amor com as suas priminhas de maminhas arrebitadas do Minho? Para quê uma dúzia, não teria bastado uma caixa de seis?
- Olha para ele… agradeceu… chamas àquilo um agradecimento? “Muito obrigado, uma merda para a tua cara, és um totó”? Nem tiveste a veleidade de sorrir nem nada, foi um cumprimento ressentido e amarelo, tu nem sequer sentiste o que disseste…
- Não notei um pingo de intensidade dramática… - juntou-se o outro, explicando as razões da interpelação do par a Firmino – Podias ter ao menos dado um “passô-bem”, uma palmada nas costas, eh pá, alguma coisa mais substancial. A mim pareceu-me que estavas um pouco nervoso e que quiseste despachar-nos… Ficou-te mal…
- Queremos mais do que isso. Tu consegues fazer melhor – incentivou Aurélio. Firmino acalmou-se: ahá!, talvez os preservativos tenham ficado no carro, afinal. No resguardo da sua porta. Esperem lá: a porta não tem resguardo. Ou tem? Mas qual foi a sua ideia de deixar os preservativos no carro? Como é que Firmino fode no seu carro? Nunca experimentou… Ou já? Ou serão os comprimidos para a sinusite que estarão no guarda-luvas? Não eram comprimidos para outra coisa qualquer?
- Pronto, se é isso que querem… - Firmino abraçou Aurélio e o outro, dando simpáticas palmadinhas na zona da omoplata a ambos, sussurrando aos dois:
- Muuuuuuito obrigado!! Espectacular! Vocês salvaram-me a vida! Este livro é tudo para mim! Como é que vos posso agradecer?
- Agora estiveste bem. Estiveste no limiar da bajulação insidiosa, quase a perpassar o risco da adulação irritante; pronto, estiveste muito perto de passar do agradecimento para a graxa, mas, no cômputo geral, esse agradecimento motivou-me para praticar mais boas acções no futuro – avaliou o outro.
- É, eu também acho que sim. Acho que todos nos engrandecemos enquanto seres humanos neste momento. – concluiu Aurélio. Firmino preparou-se para retomar o seu caminho.
- Ó amigo, já agora… - interrompeu Aurélio – Você disse-nos ao ouvido como é que nos podia agradecer… e nós sabemos como.
- Pois é. É que, ‘tás a ver, nós somos, tipo, profissionais do agradecimento; prestamos ajuda não totalmente voluntária, no fim queremos sacar um agradecimento das pessoas… é esta nossa vida, por aí, pelas ruas, pelos parques de estacionamento como este aqui, ajudando pessoas preocupadamente a pensar na retribuição que nos possam dar…
- Nós vivemos para nos agradecerem, percebes? Somos justiceiros benquistos a actuar na sombra, tipo isso – atalhou o outro. Aurélio prosseguiu:
- Mas isto de viver da alimentação do ego não nos alimenta o estômago. Não tens aí uns troquinhos para comprarmos um bife do lombo? Uns centimozitos, devem chegar…
- Eh pá, lamento muito, deixei o resto na máquina, ao pagar o estacionamento… - desculpou-se Firmino. Ou não? Não importa, o que Firmino queria era despachar-se, ainda tinha que procurar pelos preservativos.
- Não há mesmo nada, nada? – insistiu Aurélio.
- Não, desculpem lá.
- Pronto, nós trabalhamos para o “obrigado” e temos de saber conviver com o “desculpem lá”. – cedeu Aurélio – Vamos, o outro, vamos bazar, que há muito mais gente por aí com vontade de nos agradecer pela nossa ajuda.
Afastados de Firmino, o duo cochichou entre si:
- Guardaste a caixa dos preservativos que eu achei, o outro?
- Guardei, Aurélio. Só não percebo é porque não fizemos o gajo agradecer-nos por isto também…
- Os preservativos são valiosos, o outro! Isto de vivermos dos agradecimentos é uma coisa bonita, mas nós também precisamos de foder em segurança, ou não? Eu não me arrisco naquelas ratas lá do bairro à maluca, podes crer nisso!
- Tudo bem, mas estes preservativos sabem a alho… serão assim tão valiosos?
- Ainda têm o seu valor, o outro. Há quem aprecie.

Firmino não encontrou os preservativos, depois de muitas voltas na sua viatura. Além do mais, todo este enredo impediu-lhe de sair do parque nos quinze minutos úteis que sucedem à extracção do ticket amortizado da máquina. O que se passou a seguir foi de uma brutalidade assombrosa. Verdadeiramente devastador. Firmino caíra nas teias demoníacas do destino.

Mas por agora não vou contar.

Não vale a pena. É apenas violência gratuita.

Sem comentários: