segunda-feira, junho 25, 2007

A Vida É Dura

Soa o silvo das 10:30. É hora do intervalo. Armando Castro e Coutinho (ACC) dá um toque no seu lenço ao pescoço enquanto se encaminha para a sala de estar, para junto das pesadas estantes pejadas de calhamaços e edições volumosas dos grandes épicos clássicos. Senta-se na poltrona junto à janela e acende o seu cachimbo, expelindo uma primeira baforada vigorosa e farta. Olha para o exterior, repara nos tons cinzentos, na pose suja das paredes industriais. À 3ª baforada no cachimbo, surge na sala o seu colega Francisco Aires Braancamp (FAB). ACC congratula-se.
- Oh-oh!, Sr. Engenheiro, bons olhos o vejam… folgo muito por vê-lo aqui! – cumprimenta ACC, dobrando-se na direcção de FAB com um sorriso entrecortado pelo fumo do cachimbo.
- Como vai, Sr. Doutor… então como foi o resto do seu fim-de-semana? Estava a adorar o cocktail do Arquitecto Ruy Mello do Amaral e as animadas conversas que mantinha com a embaixadora do Brasil, mas saí antes do tempo: tinha de receber um grande amigo da Sorbonne, que chegava ao Aeroporto provindo duma conferência em Boston, e não pude demorar-me…
- Ah, foi óptimo, aproveitei para colocar a leitura em dia… ouvi o opus 17 do Henryk Wieniawski em violino num passeio que fiz pelo jardim, aproveitei para passear os meus três Labradores pelo solzinho tépido da tardinha… muito reconfortante, aquele violino e aquela atmosfera morna. O resto do cocktail foi soberbo, muita classe e elegância, tanto no ambiente intelectual como nas decorações avant-garde… o Arquitecto Ruy Mello do Amaral sabe escolher o pessoal certo para o catering e para a animação… um sucesso trepidante. Foi verdadeiramente uma pena o Doutor não ter continuado.
- Com efeito… mas amigos são amigos, não podemos deixá-los à espera, pois não? – FAB senta-se na outra poltrona, sorri para ACC, que se agarrava ao cachimbo, sorrindo igualmente em resposta a FAB. Pega no Financial Times que repousava na mesinha de vidro contígua e prossegue a conversa – Então, Sr. Doutor, como tem sido esta manhã?
- Olhe, tenho composto umas paletes com os caixotes de banha, já arrumei os baldes que o Sr. Silva pediu no contentor…
- Ai sim? Veja bem que o Doutor Bernardo Holstenstein de Vasconcelos açambarcou o banquinho da secção, fiquei apenas com a possibilidade de fechar as caixas e aplicar os rótulos ao lote 4 sentado na escada de madeira! Mas já vamos a meio.
- O lote 4 é para exportação não é?
- Sim, é um grande lote para sair para as Berlengas. Estou a trabalhar com um excelente ritmo. Dou-me bem com a pistola dos rótulos, aquilo tem sido uma limpeza!
- Eu não posso dizer o mesmo – lamenta ACC – tenho uma dor nas costas que nem posso… custa-me muito arrumar as paletes, devia ser aquele jovem talentoso a fazer isso… eu ficava na rotulagem ou a conduzir o porta-paletes, mas o Sr. Silva acha que não… você sabe quem é o jovem a que me refiro, não sabe, Sr. Engenheiro?
- Quem? O Diogo Lucena de Medeiros, o filho daquele grande industrial açoriano? O que introduziu novos conceitos de organização industrial aqui na empresa e que ficou na máquina do enchimento da lixívia?
- Não, Sr. Engenheiro, está a fazer confusão com o Afonso Sassetti Barganha, que está agora com as embalagens de cartão para os lotes de azeite. Falava era do Dr. Duarte Abrantes Coimbra, aquele jovem muito dinâmico que gosta de jogar golfe e cultiva um gosto impressionante pelos vinhos mediterrânicos envelhecidos em casca de carvalho… o que tem uma quinta no Alto Douro e que traz sempre o seu Bentley azul-safira para a empresa…
- Ah!, já sei, o jovem que está ligado à reparação das infiltrações e que esporadicamente efectua a reposição dos expositores, sei quem é… anda sempre com uma chave inglesa num bolso e um monóculo noutro, sei bem quem é…
- Está a ver, não está? Ele é muito proactivo, já o vi a consertar, sem pestanejar, a canalização da fossa do nosso WC, que estava a corromper-se devido à baixa qualidade das tubagens e ao elevado grau de acidez das nossas defecações, que estão bastante contaminadas pela constante exposição a este ambiente tóxico da fábrica … no meio daquelas ratazanas e daquele fedor, pois tratava-se de uma mistura de urina e fezes de operários semi-especializados marinada durante o fim-de-semana, o Dr. Duarte Abrantes Coimbra revelou uma serenidade e uma agilidade impressionantes… não se deteve perante as adversidades e nem luvas utilizou! Era o jovem indicado para arcar com as paletes… mas o Sr. Silva acha que não…
- O Sr. Silva o quê, car****? – brada o próprio Sr, Silva na ombreira da porta, apanhando desprevenidos ACC e FAB, que, assustados e envergonhados, olham para chão em submissão.
O Sr. Silva é o chefe da fábrica. Homem duro, de modos rudes, impõe respeito pela sisudez das suas expressões e pela elevação da sua voz. Possui a 4ª classe incompleta, admira os sucessivos presidentes do Benfica e costuma compor a plateia dos reality-shows da TVI e do Preço Certo em Euros da RTP. Vê-se frequentemente acompanhado por um garrafão de vinho de mesa da cooperativa local e enverga uma camisa cheia de nódoas com os botões desapertados, que usa durante semanas a fio e apenas substitui por outra com características idênticas. Possui uma aura de autoridade que fascina os operários, de tal forma que estes fazem os impossíveis para agradá-lo.
- Nada, nada, Sr. Silva. Estávamos apenas a elogiar o seu conhecimento das questões práticas inerentes ao nosso tecido empresarial contemporâneo … - desculpa-se ACC.
- Sim, e a relacionar o seu instinto negocial com o dos grandes empreendedores clássicos da revolução industrial britânica do século XIX… - coadjuva FAB. O Sr. Silva não se mostra impressionado:
- Cá para mim, estão é com conversas da tanga e dizer mal do patrão! Eu acabava mas era com esta me*** dos intervais…
- Permita-me corrigi-lo, Sr. Silva: o plural de “intervalo” é “intervalos” e não “intervais”, como incorrectamente mencionou… - indica ACC, baixinho e a medo.
- Como é que é, car****? O que é que estás praí a dizer? Que me*** é essa? – interroga o Sr. Silva, com sobrancelhas carregadas e olhar cortante dirigido a ACC.

- É… é como disse o meu colega, Sr. Silva. Está no novo dicionário para a Língua Portuguesa para 2008, compilado pelas mais eminentes personalidades linguísticas do espectro português… - ajuda FAB, percebendo que ACC estava nervoso e inquieto, tremendo a mão que segurava o cachimbo.
- Que se f*** o plural de intervalo, voceses sabem o que quero dizer: voceses não querem é fazer nenhum, é o que é! Andam praí a falar de letras, museus e monumentos, estão sempre prontos prós intervais, mas quando toca a trabalhar… népia! Tenho de andar sempre em cima de vocês pra que mexam esses cus gordos e preguiçosos, senão… era o bom e o bonito! Direitos laborais de me***, voceses haviam de andar cá quando eu comecei em 1972, ficavam logo sem manias! Dantes era tudo munto mais fo****, ah pois era! Agora está feito prós meninos e estes inda se queixam!
- Tem toda a razão Sr. Silva. Pedimos desculpa – admite, cabisbaixo, ACC. ACC apaga o cachimbo e FAB pousa o Financial TImes de volta em cima da mesa, corroborando ACC:
- Nós não queremos perder o nosso trabalho, Sr. Silva… mas, como compreende, também mantemos uma vida própria para além deste trabalho operário, Sr. Silva… também gostamos de literatura erudita, de exposições artísticas arrojadas e de ensaios sobre ciência política… coisas normais para meros assalariados…
- Normal era voceses trabalharem mais e falarem menos! Eu também gosto de levar a minha mulher com os putos à feira ao Domingo e ver o Glorioso a jogar, mas essa me*** é toda fora do expediente, percebestes, ó Miguel?
- Francisco, Sr. Silva. Francisco Aires Braancamp.
- Quê?
- É o meu nome. O Miguel era o meu irmão.
- Ah, pois é, o Miguel foi aquele miúdo que ficou preso dentro do tanque dos vernizes… voceses são parecidos… - e o Sr. Silva, após coçar o escroto que pendia flácido pelo buraco das calças, revela – Ainda me dás mais razões pra andar sempre em cima de voceses: já dei trabalho ao teu irmão e, depois do teu pai me fazer a cabeça como o car**** pra te dar uma oportunidade a ti também e de te ter dado essa oportunidade, ainda reclamas! Não tenho culpa que o teu irmão não largasse o livro do Vasco Pulido Valente antes de começar a limpar o tanque e que se tenha afogado quando despejaram o diluente, tivesse abrido os olhos e não andasse distraído!!! Qué que se passa, andares numa fábrica a pôr rótulos nas embalagens é mau, não? Querias começar logo por cima, pelos empilhadores, queres ver? Isto aqui é assim: lá por seres um Aires Braancamp e eu me dar bem com o teu pai, que é um empresário porreiro e orienta uns bons caracóis, embora fale muito sobre relações internacionais, neoliberalismo e outras coisas sem jeito, não quer dizer que venhas práqui pra andares com as mãos nos bolsos! Isto aqui é pra mexer, ouvistes, ó Francisco? E a me*** é também pra ti, ó Armando! Portanto, pianinho, ou há me*** a sério prós vossos lados!
- Desculpe, Sr. Silva. Eu nunca mais cito Baudelaire nem Schopenhauer, prometo – anui ACC.
- Perdoe-me a insubordinação, Sr. Silva. O senhor meu pai e V. Exa. não merecem tal desconsideração da minha parte. Doravante, preservarei os meus interesses filantrópicos e relacionais fora do expediente laboral, Sr. Silva. É um compromisso que agora ratifico formalmente perante vós, com o selo da minha palavra de honra – cede FCC. O Sr. Silva condescende um pouco:
- Tá bem, tá bem, pode ser, desde que vocês parem com essas me**** que só fazem confusão à cabeça. Isto do intervalo é só 15 minutos, aproveitem mas é o tempo pra pensar como é que vamos tratar do lixo que a máquina dos hambúrgueres fez. Se a inspecção vem aí estamos fod****, quero livrar-me rápido daquela me***, nem que tenha que mandar os óleos e as carcaças das ovelhas todas pró rio. Já pensastes nisso, ó Francisco?
- Sr. Silva, eu estou com o lote 4 nesta altura…
- Lote 4, hã? Deixa essa me*** pra depois, vais agora pegar nos bidões e começar a acartar os ossos dos bichos.
- Mas, Sr. Silva, o lote tem de finalizar hoje para… - o Sr. Silva interrompe FAB, furibundo e vermelho:
- Olha lá, ó car****! Mas tenho que te fazer um desenho, atrasado mental?!? MAS QUEM É QUE MANDA NESTA ME***, CAR****?!?
- É o Sr. Silva, Sr. Silva – respondem o Doutor e o Engenheiro, encurvados, quase ganindo.
- MAIS ALTO, CAR****!!!
- É O SR. SILVA, SR. SILVA! - repetem ambos, muito encavacados.
- SOU MESMO EU, CAR****!!! QUE NÃO RESTEM DÚVIDAS, FO**-**!!!! Ainda agora falámos disso e voltámos a cair na mesma me***!! Eu quero que as vossas preocupações vão prá co** das pu*** das vossas mães!! AQUI FAZ-SE O QUE EU DIGO, TÃO A VER!!! Fo**-**, que estes doutores e engenheiros da trampa fo***-** os cornos que é uma coisa parva!... Fo**-**, que meninos que me saíram!... E tu, ó Armando, praonde vais?
- Eu estava com as paletes da banha, Sr. Silva… Podia ir tratar dos bidões com o Doutor Aires Braancamp, se assim o achar…
- Não, não acho, ó Armando! Voceses querem é ficar os dois juntos prá conversa! Ficas com as paletes e ficas muito bem! Quero que essa me*** acabe até às cinco, que hoje joga o Benfica com os estrangeiros e tenho de dar à sola cedo!
- Doem-me as costas, Sr. Silva… Farei o melhor… - choraminga ACC.
- Ai doem-te as costas, meu car****?!? Se não levasses na peida a toda a hora, estavas melhor!! Ahahahah!!!! – zomba o Sr. Silva, gargalhando de forma a exibir a laringe e os dois ou três dentes podres que ainda conserva. O hálito a bagaço e cebola do Sr. Silva ofendeu ACC, mas este responde respeitosamente.
- Não, Sr. Silva, eu sou casto e puro. Não sou de todo homossexual. As dores provêm mesmo do meu esforço lombar.
- Tava a brincar, Armando, tu és mais mamadas!! Ahahahahah!!! Paneleirito de me***… Até o teu nome é de pane*****… Vá, acabou a farra. Vão lá trabalhar! E tu, ó Armando, é bom que não venhas com essas queixas de me*** outra vez, só te atrasa o trabalho. A andar, calões, a andar!!!
Um apito ecoa, anunciando o fim do intervalo. Saídos da sala de convívio, o Doutor e o Engenheiro confidenciam entre si, a salvo do Sr. Silva, enquanto se dirigem para a unidade produtiva:
- O Sr. Silva tem uma maneira muito particular de fazer valer os seus pontos de vista, não tem, Doutor?
- Deveras particular, Engenheiro, deveras particular. Mas ele é o nosso chefe, sabe perfeitamente o que faz.
- Se sabe, Doutor, é um verdadeiro mestre na gestão de pessoas – aprova FAB – Os cursos que cursámos e as teses que desenvolvemos não servem para nada neste mundo cão da fábrica. O Sr. Silva domina-nos com a sua assertividade comunicacional e nós sentimo-nos impotentes perante semelhante acutilância analítica.
- Completamente derrotados; diria mais, parecemos uns “Vencidos da Vida”… tal e qual Queirós, Ortigão e os seus pares no Hotel Bragança… – acrescenta AAC – É melhor obedecermos: isto do trabalho não é assunto que nós, meros operários de refinado gosto social, possamos opinar com quem conhece a fábrica como a palma da sua mão. Deixemos o Sr. Silva comandar.
- Valha-nos ele, o omnipresente Sr. Silva. Ele dirá o que for melhor para nós – e FAB coloca-se de pistola de rotulagem em punho, aguardando pelas embalagens que se avizinham no tapete rolante.