quinta-feira, junho 28, 2007

Erro de Casting

Fala-se muito em “erros de casting”. É frequente, hoje em dia, aplicar-se esta expressão aos políticos. X é erro de casting do Governo porque não percebe nada da rotatividade das culturas e está designado como Ministro da Agricultura, Y é um erro de casting do partido Alfa, pois deve fazer oposição e a sua especialidade é a prova de vinhos, etc.. Normalmente, quem aplica este chavão aos políticos é uma mole insolente de críticos (ou outros políticos), doutos conhecedores de todas e quaisquer matérias, as quais dominam de tal forma que se torna simplesmente embaraçoso assistir o ente criticado a tentar fazer alguma coisa. Se estivessem lá eles, cremos nós, as coisas seriam bem diferentes, julgando pelo rubor das suas palavras de desaprovação. Bem, a meu ver, muito dessa massa crítica é, em si, um exemplo acabado de erros de casting: eles são tão, mas tão bons, que estão claramente a mais na tribuna a mandar bitaites – deviam experimentar fazer aquilo que criticam, saltar para o outro lado da barricada para o próprio bem nacional. Mas o bem nacional é, para os críticos, um conceito muito difuso, que facilmente se confunde com o seu bem-estar pessoal e com a preservação da sua posição inatacável enquanto críticos. O crítico quer ridicularizar e fazer piadas com as pessoas que assumem responsabilidades e, não raras vezes, acabam por ser eles mesmos a piada. Os críticos fazem-me rir muito mais do que quem está em posição de actuar e decidir. Mas se calhar sou só eu que me divirto desta forma, talvez por possuir um sentido de humor muito distorcido e pouco convencional.
E também porque estou à vontade, mesmo reconhecendo que caio algumas vezes na tentação da crítica. Diariamente, sinto que sou o exemplo acabado do não-erro de casting. Falo do Football Manager, obviamente. Em 10 épocas ao serviço do mesmo clube, ganhei tudo o que havia para ganhar. Coloquei o clube com uma saúde financeira invejável. Possuo no plantel o melhor guarda-redes mundial. Praticamente todo o plantel é seleccionável para as respectivas equipas do seu país. Os adeptos e a direcção adoram-me. Colecciono prémios atrás de prémios. Loto o estádio quando jogo em casa. É um sucesso total, os adversários têm vergonha. Sou a pessoa certa para aquele cargo. Não há dúvidas. Dou-me ao luxo de exigir a vitória em todos os jogos, de pedir mais aos jogadores durante o intervalo seja qual for o resultado, de castigar alguma voz dissonante no seio da equipa e de punir a mesma com repreensões formais aquando dum resultado menos positivo. Isto sim, foi um casting perfeito.
É claro que tudo isto é ficção. Na realidade, a expressão “erro de casting” provém do ambiente cinematográfico/ televisivo. “Casting” é um termo do meio do espectáculo. O “erro de casting” era originalmente exclusivo dos críticos de cinema, mas a sua fama perpassou para os restantes críticos doutras áreas, sedentos de mais “catch-phrases” com as quais pretendiam dilacerar os seus ódios de estimação. No cinema, houve um filme que me marcou negativamente. E aqui vou ser um crítico, mais uma vez, penitenciando-me por permitir-me este prazer de dizer mal por dizer mal. Esse filme era o “Street Fighter” e o actor (?) o Van Damme, Jean-Claude de seu nome. Interpretou o papel de Guile, oficial do exército americano, e foi duma atrocidade representativa inigualável. Das percepções recolhidas nas máquinas do jogo que originou o filme, eu tinha Guile como um tipo rebelde, um gajo armado em bom que penteava a poupa loura com insolência após mais uma vitória, que bebia uma lata de Budweiser como se fosse Isostar, que convidava os top-guns musculados do seu pelotão e as respectivas namoradas para assistir aos seus combates no porta-aviões e que não tinha muita disciplina militar, substituindo a mesma por um desejo imparável de dar uns pontapés acrobáticos nos queixos dos adversários, fossem eles a Chun-Li , o Zangief ou o Blanka. Van Damme não foi nada disso. Rosto imutável, cabelo rapado sem possibilidade de pentear, fiel ao exército, menos elástico e mais corpulento que o Guile da máquina. O filme foi um “flop”, e creio que sê-lo-ia mesmo com o Orson Welles a fazer de Guile, tal a debilidade do “argumento”, mas da fama Van Damme não se livrou: é o maior canastrão do cinema, o exemplo acabado dum erro de casting, pior que Chuck Norris, Steven Seagal, Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger na fase pré-política. Se se enredou nas teias da cocaína pelo efeito das críticas devastadoras (e razoáveis, neste caso), não sei. Mas que é a fotografia que acompanha a definição de “erro de casting” no meu dicionário, lá isso é.
Regressando ao campo político, eu até concedo, nesta época de eleições intercalares em Lisboa, que possam existir alguns erros de casting. Afinal, em tanto candidato, algum há-de ser mau. Mas não me imiscuo na análise política destas eleições; os críticos especialistas que falem disso. Eu quero é dar um exemplo dum erro de casting na forma de comunicação. Falo do cartaz da Helena Roseta. Não estão em causa, repito, as qualidades humanas e profissionais da senhora. Está em causa o péssimo casting da equipa de marketing que a suporta, não sei se por questões monetárias ou apenas por mau gosto. Um cartaz daqueles é um suicídio político. O cartaz não tem praticamente mensagem nenhuma: “Movimentos dos cidadãos”, “Helena Roseta a presidente”, salvo erro, é tudo o que se lê. O pior são as cores e a pose da Helena no cartaz. Quanto às cores: branco em cerca de 25% do cartaz e um verde desenxabido nos outros 75%. Aquele verde lembra vómito de bebé doente e o cartaz abusa desse verde enfermo, é uma cor muito feia que não é suficientemente preenchida com nada, nem com letras nem com a cara da Helena aumentada – a cara não fica muito ao centro nem bem à direita do cartaz e há um grande espaço morto que fica para ali, abandonado e inútil. Bem, mas se calhar não convinha aumentar a cara da Helena: é que ela faz um esforço tão grande, mas tão grande, para sorrir no cartaz, que me fica a convicção que a fotografia lhe foi tirada num acesso diabólico de diarreia da pobre Helena, tal a força e a coragem empregue por Helena para arrancar um sorriso das suas próprias entranhas. Mais a sério: não me lembro de alguma vez ter visto Helena Roseta a rir-se, por que raio ela tenta fingir para o cartaz? Mais valia ter sido natural e colocar a sua expressão normal de feminista inquebrantável de papos descaídos e carantonha feia dirigida a quem ataca o corpo da mulher, os espaços verdes, a pluralidade de opiniões, os carros poluentes e toda essa amálgama de coisas profundamente inquietantes que perturbam o espírito militante de Helena Roseta. Decidiu-se por um sorriso taxativamente forçado e escolheu aquela fotografia por não querer perder mais tempo com ensaios de fotogenia; tudo bem, não lhe auguro muito futuro autárquico só por causa disto.
Largando o lodo da política, que ainda hoje tomei banho e não quero estragar a limpeza deste momento inolvidavelmente bem-cheiroso, todos reconhecemos que já fomos ou cometemos erros de casting, nem que pontualmente. Reuniões para as quais somos convocados sem perceber porquê e que presenciamos durante intermináveis horas, sem sequer abrir a boca e sem nunca captar qual o assunto discutido; festas de aniversário e casamentos para que nos convidam e nos quais não conhecemos ninguém, à excepção daquela pessoa que conhece toda a gente e que estará demasiado ocupada para nos dar atenção, forçando-nos a comunicar com desconhecidos ou a passar o tempo junto aos comes e bebes; funerais de parentes desconhecidos dos quais recebemos a notícia e nos quais não conseguimos verter uma lágrima que seja, apesar do esforço das trincadelas na língua; sermos atraídos, no auge da toxicidade nocturna, para sessões de sexo com lésbicas deliciosas que afinal não querem saber de nós para nada; uma namorada que estupidamente tivemos, sem friamente percebermos o desespero que nos levou nessa altura a preferi-la e a qual fingimos desconhecer quando voltamos a vê-la na rua, ainda mais gorda, desdentada e parva do que quando andámos com ela; enfim, uma multiplicidade de situações desconfortáveis que vão acontecendo, deixando-nos a ideia que ninguém está livre de ser considerado um “erro de casting” ou de incorrer em sucessivos “erros de casting” quando menos se espera. O espectáculo continua, de qualquer forma, e o dinheiro do bilhete já foi gasto.