quarta-feira, junho 20, 2007

Elite

Sim, ser maior. É tudo aquilo que fui, sou e serei. Ao meu lado, desfiles de pessoas desinteressantes, grotescas, deselegantes enchem-me de razão.
Não, o meu ar não é o mesmo. Os meus micróbios são assépticos. Eu espirro pó de ouro, pó dos anjos, pó de arroz. E esta maralha de gente espirra germes doentes. Eu bem os vejo, inchados de tanto colesterol, amarelecidos por crises hepáticas e diabéticas. Eu passo incólume. Eu quero passar, é bom que me deixem.
Se o meu sangue não é azul, pelo menos não é vermelho como o da plebe. Eu bem noto a gordura nos cabelos brancos desses assalariados atrozes que pululam em instituições públicas, em filas que não suporto. Eu bem me indigno com a espera que me espera e brado alto “Não pode ser!”, jogando com os meus múltiplos e nobres apelidos. Não quero misturas. A pureza não se mistura, perpetua-se por si mesma se forem mantidos os critérios de selecção. E como eu selecciono.
Então quando eles vêm com a história dos beijos e abraços… com a história de grandes pratos de cozido à portuguesa, pratos cheios de enchidos e pés de porcos repugnantes, com uma unha encravada e tudo por cima da rija couve galega… com a história de férias na praia de Quarteira, paredes-meias com os pescadores descalços e incultos, sujeitos a arrastões e empurrões… com a história de um emprego mal pago e ignóbil, onde grassa a sujidade e a incompetência… sinto que este mundo não foi feito à minha medida.
Se calhar, é este o meu dom, é esta a minha predestinação divina: o de ser a excepção. O de ser a elite. Não uma elite presunçosa; antes uma elite verdadeira, genealogicamente comprovada. Na minha cabeça existem e nas minhas mãos cabem todos os direitos, mas também alguns deveres. O dever de cumprimentar com um beijinho apenas. O dever de falar com um sotaque único, nem bem português, nem bem francês, nem bem tricémico-21. O dever de comer meia folha de alface por refeição. O dever de determinar o que é realmente bom e de limitar o acesso a essa qualidade inaudita a seres menores e mal-agradecidos. O dever à indiferença direccionada a quem não é convidado para dentro do meu perímetro social. O dever inalienável ao desprezo.
Há demasiados seres menores por aí, já quase que não se pode sair de casa. Esse povinho mesquinho é muito bruto. É muito feio. É muito fácil de contentar. Basta-lhes acenar com coisinhas brilhantes e lá vão eles. Eu não aguento. Para eles champanhe é Raposeira. Para eles espectáculo é a TVI. O que é o bailado para um indivíduo a recibos verdes? Gentinha medíocre esta.
Gentinha invejosa, também. Sim, compram revistas e assistem a programas das nossas vidas em transe. Como se alguma vez pudessem nos equiparar. E depois imitam e tentam regurgitar os nossos perfis. Detesto esta falsa nobreza. Eu sou o protótipo do ideal. Eu sou quase perfeito. Tenho um nível intelectual, moral e espiritual incomparavelmente superior, supero qualquer teste que me queiram colocar para provar o que digo. Mas, como não tenho de aturar com esta gente, não me dou sequer ao trabalho de me provar perante eles. Não lhes dou esse gosto.
Quero-os sim para passarem a ferro a minha delicada roupa, que já apliquei o creme nas mãos. E se eles queimarem alguma peça, despeço-os. Um castigo natural e justo. Com eles, nem beijinho, nem contacto: fiquem a uma distância mínima de segurança. É que o mal propaga-se acelerado por terrenos puros, qual fogo a irromper por uma selva virgem. Devemos proteger-nos desses modos primitivos e assegurar a nossa própria procriação. Salvaguardar as melhores castas e preservar o nome brasonado.

Sem comentários: