domingo, julho 15, 2007

Os Bravos do Pelotão

Bombas rebentam por todo o lado. Contexto: coração do teatro de guerra. Entrincheirado na lama, entre o clamor e os clarões, o Alferes Mealheiro conta as espingardas com o Cabo Ruivo.
- Cabo Ruivo, onde está o nosso pelotão?
- Está completamente disperso, Alferes Mealheiro. Receio termos sofrido grandes baixas.
- Sabes do Tinóni?
- Morreu.
- E o Coratos de Alumínio?
- Morreu.
- E o Azeites?
- Morreu com o Tinóni e o Coratos de Alumínio.
- Quê? Foi uma granada?
- Não. Foi a ração militar que comeram… já tinha passado do prazo de validade.
- Ena pá… e o Jonas Doninha?
- Não veio.
- Não veio?!?
- Não. Ficou na caserna a lavar a roupa.
- A lavar a roupa? Como é possível?!?
- Eu também acho mal. Ao menos que fosse para limpar as latrinas… aquilo está uma miséria, sempre que o Zé Badocha vai lá deixa aquilo num estado lastimoso.
- Por falar nele, o que é feito do Zé Badocha?
- Está com medo.
- Com medo? E onde ele está?
- Hãã… deve estar por aí, todo borrado. Como de costume.
Um morteiro rebenta bem perto da trincheira dos bravos Mealheiro e Ruivo. Com a explosão, destroços de vária ordem atingem os capacetes de ambos. Bem ao lado deles, aterra a cabeça do pobre Zé Badocha.
- Cá está ele, meu Alferes.
- Pobre Badocha… Bem, mas ainda deve sobrar o Saraiva…
- … está a estudar para o exame de flauta transversal no acampamento…
- Como assim? Mas esta era a nossa batalha decisiva!
- Não diga isso, meu Alferes! O meu Alferes não sabe as privações que o Saraiva passou na vida para chegar até este exame!
- Quais privações, Ruivo?
- Hãã… Muitas! Percebeu? Muitas! Tipo… por exemplo, não teve juventude. Perdeu toda a juventude.
- Por causa da flauta transversal?
- Por acaso, foi mais por causa da estupidez teimosa dele e da sua ligeira paralisia cerebral. Se calhar, um pouco também por causa da flauta transversal.
- Bolas, Ruivo! Exceptuando o Sargento Rosado…
- O Sargento Rosado passou para o lado do inimigo.
- Hã?!? Como assim?!?
- Pagavam o dobro do subsídio de almoço. E o Sargento achou que eles eram mais simpáticos.
- Simpáticos? O nosso inimigo?!? Tudo o que nós odiamos?!?
- Meu Alferes, temos de reconhecer… eles até pedem licença antes de dispararem à queima-roupa… executam prisioneiros de guerra apenas depois de lavar as mãos com sabonete… e têm sempre um sorriso quando nos capturam, nunca proferem palavrões…
- Rai’s parta!! Traidores!!! Resta-nos o nosso homem da pontaria, o valente Tobias.
- Qual Tobias?
- O Tobias, Ruivo! O homem que despachou dúzias e dúzias de inimigos na famosa operação que chamámos “Operação Conhecida por Ter Nome”… diria mesmo, dezenas de inimigos! O mais bravo do pelotão, Ruivo!!
- Ah, o Boca Mole?
- O Boca Mole?
- Sim, pusemos-lhe essa alcunha. Ele está indisposto.
- Indisposto?
- Sim, ele não pode ver muito sangue… Começa a tremer e fica sem forças…
- Mas como, Ruivo?!? O nosso mais destemido operacional?!?
- Pois é, meu Alferes. As pessoas mudam. Eu próprio gostava mais de ter as paredes da minha sala pintadas todas de branco, apenas com uma das paredes mais pequenas (que a minha sala é rectangular) pintada com outra cor, para destoar e para realçar os interiores… mas desde que descobri uma casa na Baixa que vende papel de parede feito com um plástico italiano especial, não quero outra coisa. Coloquei aquele papel de parede em toda a minha casa.
- A sério, Ruivo? É curioso, eu também já estive nessa casa e fiquei com a mesma impressão… Eh, pá, aquilo é que é design! Aquilo não tem nada a ver com o antigo papel de parede que todos conhecíamos…
- Nada mesmo, meu Alferes. É outra louça. E chegou a ver os cortinados?
- Ainda pensei em trazer um para pôr no meu quarto… estou farto dos cortinados que lá tenho, sabes? Os miúdos deram cabo deles quando eram putos, penduravam-se neles e tudo, acho que está na altura de trocá-los. Agora os miúdos já estão mais crescidos, já não os estragam. Mas ainda são caros, não são?
- Meu Alferes, é como em tudo: espetam-lhes com uma etiqueta de prestígio em cima e passam logo a valer mais. É dispendioso, sim senhor. Mas a qualidade está lá toda.
- Queres ir lá comigo, Ruivo? Íamos com a minha mulher, que ela tem de ter uma palavra a dizer, sabes como é, ela é a patroa. Mas garanto-te que vou comprar um cortinado pelo menos, diga o que ela disser.
- Vou pois, Meu Alferes. Será um prazer. Aproveito para levar a minha mulher comigo. Ela vai adorar, aposto. Aliás, foi ela que me indicou a loja e que me trouxe o catálogo.
- Eh, pá, tens aí o catálogo? Isso é que era à maneira…
- Infelizmente não, meu Alferes. O inimigo tomou o catálogo durante a nossa incursão na frente oeste.
- Irra, Ruivo! Estamos mesmo por nós! Temos de nos aguentar! Avancemos, então! Deus está connosco!
- Está bem… vamos então, meu Alferes. Que Deus nos acompanhe… vamos ver os cortinados na 3ª feira?
- 3ª feira não, Ruivo. 3ª feira pensava ir cortar o cabelo, se entretanto sobreviver, tenho de aparar estas patilhas que já não se parecem com nada… Não queres ir logo na 2ª feira pela manhãzinha?
- 2ª feira a loja encerra para descanso do pessoal, meu Alferes…
- Então vamos lá agora, que tal? Abandonávamos isto, que também já não podemos fazer muita coisa sozinhos… e eu não sou nenhum herói por aí além… nem eu, nem tu…
- Boa ideia, meu Alferes! Eu próprio já não me sentia muito motivado para combater, já morreu muita gente e eu podia ser o próximo…
- Ó Ruivo, então vamos mas é ver uns cortinadozinhos jeitosos e deixar o inimigo gastar o arsenal deles em vão…
- Vamos lá, meu Alferes.

1 comentário:

Muntubila disse...

ou as mil e uma razões para não abrir granadas com os dentes, um dia podem rebentar-nos na cara... shackk!!