segunda-feira, julho 09, 2007

Então, Doutor?

Serafim aguardava no consultório pelo médico. Ao fim de longos minutos de espera imóvel e silenciosa na cadeira, o Dr. Xilofone finalmente aparece, mastigando um cachorro quente e chupando uma gasosa.
- Como está, Dr.?
- Eu vou bem, obrigado. O senhor é que não parece bem…
- Como é que sabe, Dr.?
- Em primeiro lugar, porque está num consultório médico. Em segundo lugar, porque está com um ar extremamente abatido…
- Pois… estou há muito tempo à espera, devo ter ficado aborrecido… a enfermeira disse-me para entrar, que o Dr. aparecia logo…
- Ah, bolas, ela poderia ter-lhe dito que tenho uma PlayStation mesmo aqui atrás da cortina, você poderia ter-se distraído… – e afastando a cortina, exibe-lhe a consola, devidamente acoplada a um televisor – Olhe, o último paciente ficou pior da úlcera, teve de ir rapidamente para as urgências do hospital e nem acabou o jogo. E ia para o penúltimo nível, veja lá que já tinha passado o mais difícil… Diga-me uma coisa: você é muito religioso?
- Hã… não, nem por isso…
- Você, como dizer… gosta de mulheres?
- Sim, sim… mas porquê?
- É que aqui atrás deste biombo… venha cá – o Dr. Xilofone conduz Serafim para observar o que estava atrás do referido biombo – Aqui atrás tenho uns filmes para maiores de 18… tenho aqui filmes para quase todos os gostos, menos para homossexuais, compreende… Tudo para o paciente não se entediar à minha espera… Eu próprio aprovei os filmes que aqui estão…
- Ah, está bem, Dr….,
- Olhe aqui: “Cuzinhos Independentes”, um filme português, vagamente baseado na licenciatura do Sócrates. Novidade exclusiva do meu consultório. O Sá Leão tem um “cameo” enquanto traficante de diamantes e entram a Xana e a Luísa, velhas conhecidas destas andanças. As pessoas que já viram gostaram, até houve um senhor na semana passada que recuperou logo a sensibilidade nervosa ao ver este filme, nem foi preciso submetê-lo a mais exames… Embora, devo alertar, o filme contenha cenas pesadas e possua um enredo demasiado confuso em comparação com a globalidade dos filmes do género…
- Estou a ver…
- E depois, temos os clássicos, que toda a gente gosta. Filmes nórdicos dos anos 80, como “Ali Babá e as 40 Lambonas”, um manual didáctico de sexo em grupo, ideais para pacientes com problemas psicológicos de relacionamento. Também muito visionado tem sido o “Noddy vai ao Bordel”, especialmente pelas camadas mais jovens. Houve um miúdo que até inventava problemas de acne e de herpes labial, só para vir aqui e acabar de ver o filme todo… devo dizer que a Macaca Marta não é mesmo uma macaca, é apenas uma actriz congolesa com a depilação por fazer. Amigo, você nem sabe o que perdeu… esta enfermeira é da velha escola, não percebe nada de como agradar ao paciente e por isso mandou-lhe ficar quieto à espera…
- Pois é, pois é…
- Você está com sede, depois desta espera toda?
- Bebia uma aguinha, sim…
- Ó homem, você tem problemas de fígado?
- Que eu saiba não, Dr…. mas o médico é o senhor…
- Abra a boca.
Serafim abre a boca, o médico espeta-lhe um pau de gelado na garganta e não vê nada. Xilofone tranquiliza Serafim.
- Não, não tem. Você esqueça a água; quer um licor?
- Como?
- Um licor. Aqui debaixo da secretária tenho um mini-bar… para ajudar a estabelecer uma sã relação de confiança médico-paciente – Xilofone abre as portas e exibe um manancial de bebidas alcoólicas – Que prefere? Licor Beirão? Tia Maria? Ou prefere um whisky escocês?
- Hãã… Pode ser Licor Beirão. Não sei se devo beber, estou a tomar antibióticos…
- Quem lhe disse isso? Certamente que não era um médico a sério como eu... Enfermeira – grita o Dr. Xilofone – Traga gelo, por favor. Olhe – diz Xilofone para Serafim – eu vou beber uma Aguardente Velha, a seguir ao pequeno-almoço calha mesmo bem, para enfrentarmos o dia com a genica necessária.
- Muito obrigado, Dr..
- Não tem que agradecer, você está a pagar tudo isto com as suas taxas moderadoras. Se calhar, uns amendoins salgadinhos vinham a calhar, não?
- Não sei, Dr., tenho problemas com a tensão arterial, não sei se esses aperitivos serão bons para mim…
- Ah, não se preocupe. Quantos vê? – Xilofone estica o dedo indicador e médio da sua mão direita a Serafim.
- Dois dedos.
- Você está óptimo! Para se confortar, coma uma laranja todos os dias antes de ir para a cama, logo a seguir a um leitinho morno: vai ver que não terá mais problemas com a tensão arterial. Vamos aos aperitivos?
- Sim, pronto, está bem.
A enfermeira, solícita, cumpre o pedido com brevidade. Serafim prova, a medo, o seu licor.
- Importa-se que eu acenda o meu charuto? – requisita Xilofone.
- Bem… eu tenho complicações asmáticas, costumo evitar ambientes com fumo…
- Não percebeu. O consultório é MEU, a minha pergunta era apenas retórica – dito isto, Xilofone acende o charuto. Depois de mandar uns quantos amendoins pela goela abaixo e de sorver um pouco de aguardente, Xilofone desabafa:
- O que eu gosto mesmo é de viajar, sabe? Você já foi ao leste europeu?
- Não. Eu tenho aviofobia e aeronausofobia, não viajo muito… Estive em Vigo no Verão passado…
- A sério? Bolas, que chatice, você nem sabe o que perde. São países que estão agora a experimentar o capitalismo, depois de anos de clausura. Lá cheira-se a liberdade. O nível de vida é muito aceitável. E as mulheres são lindas. Mesmo muito boas… apetece-me comer uns camarões fritos com um molhinho picante por cima… não lhe apetece?
- Adorava, Dr., mas o meu colesterol não permite…
- Qual quê! – Xilofone levanta-se e encosta o estetoscópio ao peito de Serafim – Respire fundo… isso… diga 33…
- 33.
- Está óptimo! Enfermeira, prepare aí uns camarões fritos. Enquanto isso, quer tomar um Valium, ou outro ansiolítico?
- Obrigado, Dr., mas prefiro esperar pelos camarões.
- Nem sabe o que perde. Mas faz bem, este frasco está a acabar e assim sobra mais para mim. Isto do stress no consultório dá cabo de mim, não passo sem estes comprimidos… – Xilofone toma o comprimido e dissolve-o no estômago com mais uma pitada de aguardente – Tenho de falsificar mais receitas para mim próprio, senão nem vale a pena voltar cá esta semana. Da última vez que estive aqui a atender pacientes sem Valium, morreram para aí uns quatro ou cinco. Um deles ficou mesmo irreconhecível – o gajo não parava quieto na marquesa e os gritos dele enervavam-me: parecia que os zurros dele me entravam na cabeça como um berbequim… Removi-lhe a boca com o bisturi, entre outras maldades… fiquei uns quantos meses sem poder exercer medicina, mas aquilo serviu-me de lição: nunca mais dou consultas sem uma dose de Valium. E também fiquei impedido de pegar em bisturis.
- Dr., não devíamos estar a falar daquilo que me trouxe aqui?...
- Hmmm… devíamos, mas hoje não me apetece trabalhar. Quer dizer, "hoje" é um eufemismo; na realidade, nunca me apetece atender doentes raquíticos e asquerosos como você. Ainda se fossem só gajas boas… Devia ter-me especializado em ginecologia feminina…. Hoje estava a pensar em passar a tarde a fazer downloads de filmes que ainda não estrearam pela Internet … se você quiser, traga uma pen e eu passo-lhe os filmes… você não paga nada, a conta é paga pelo Ministério. Tudo pela proximidade entre médico e paciente.
- Por favor, Dr…. Passei três madrugadas em claro para marcar esta consulta, posso ter um problema grave e agora que tenho esta oportunidade queria resolver a minha vida, estes últimos dias têm sido uma inquietação…
- Deixe lá estar isso, homem. Não se preocupe. Aproveite aquilo que lhe ofereço… A vida são dois dias e um já passou! Aproveite! BUUUURP!!!! – arrota Xilofone, sonoramente. Serafim parece entristecido e resignado. A enfermeira chega com os camarões, para entusiasmo de Xilofone, que regozija:
- Cá estão eles! Hmm, que cheirinho! Aqui para nós – diz Xilofone, baixinho, para Serafim – esta enfermeira dá-se melhor com os temperos do que com os paliativos… Descobri-a na Tasca do Alexandre, ali junto ao Cais Sodré… não me tem desiludido!
- Dr. Xilofone – intervém a enfermeira – Estão cerca de meia dúzia de pacientes lá fora a desesperar pela consulta… um deles está a sangrar bastante dos olhos e outro reclama que quer desforrar-se do Dr. no jogo da PlayStation que iniciou na consulta passada…
- Eles que esperem! Diga-lhes que estou com o meu grande amigo… o meu grande amigo… – Xilofone vira-se para Serafim e pergunta – Qual é o seu nome, mesmo?
- Serafim.
- … diga-lhes que estou com o meu grande amigo Serafim e que só estou despachado aí por volta das 6 da tarde. No mínimo. E às 7 saio, impreterivelmente.
- Mas, Dr. – argumenta a enfermeira – Ainda só são 10 da manhã…Acho que devia ser mais célere no atendimento… alguns pacientes podem piorar…
- Está bem, está bem! – zanga-se Xilofone – Vamos lá despachar isto, então! Ando eu preocupado em aproximar-me dos pacientes e depois querem ser todos despachados sem atenção nenhuma! Diga-me lá então o que o traz aqui, ó Serafim…
- Dr., sinto-me mal ultimamente, afligem-me as tonturas quando ando, não ando a ver bem ao perto e ao longe, dão-me ataques de cólicas pela noite, doem-me os rins e tenho uns inchaços estranhos nas costas… Trago comigo os últimos exames que realizei, mais umas quantas radiografias…
- Hmmm… Tem cancro do cólon – revela Xilofone, de uma assentada, sem tocar em nenhum exame nem radiografia.
- Como?
- Cancro do cólon. O cólon é uma terminologia médica. Traduzindo por miúdos, você tem uma doença incurável no cimo do cu. Dou-lhe 3 meses de vida. Eu não lhe disse para aproveitar enquanto é tempo? Agora é tarde.
- Mas, Dr…. como é possível? Como? – desespera Serafim, agarrado à cabeça – Tem a certeza?
- Não.
- Então como é pode dar-me um diagnóstico tão pessimista?...
- Ouça lá, você é médico?
- Não…
- Então não conteste! O que é que você queria, que eu lhe salvasse? Você chegou a essa situação por desmazelo, só pode!
- Mas, Dr…. 3 meses de vida…
- Pronto. Fevereiro tem menos dias… 4 meses. Mas não mais do que isso. Não pense mais em projectos de longo prazo, não vale a pena. O máximo que lhe posso fazer é receitar-lhe um xarope para a tosse.
- Para quê, Dr.?
- É um xarope que sabe extraordinariamente bem. É dum laboratório dum grande amigo meu das noitadas e que me paga bem. Além do mais, ninguém quer morrer a tossir, pois não?
- De facto… E agora, Dr.? O que vai ser de mim?...
- Agora saia e dê lugar ao próximo paciente, como a enfermeira quer. Veja lá bem, não quer comer um camarãozinho antes de sair? O próximo paciente está a sangrar compulsivamente dos olhos e não deve comer nada, é uma pena que se estraguem e que se mandem para o lixo…
- Pronto… eu como o camarão…
- Sábia decisão, Serafim, sábia decisão. Assim faz-me perder mais tempo e eu atendo menos pacientes. É que eu estou mesmo, mesmo farto de trabalhar. E você não tem muito a fazer, de qualquer forma. Vou-lhe contar a minha viagem às Caraíbas. Quer que eu coloque uma musiquinha para animar o ambiente? Um ritmo latino, pode ser?

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