sexta-feira, julho 27, 2007

Queimando a Casa

Ele disse para si mesmo, “não bebo mais”, mas devia ter falado alto, talvez alguém tivesse ouvido. A sua voz interior não conseguiu calar os delírios etílicos que se apossavam de si e lá foi ele, mais um copo, mais um pedido de esquecimento pelas tristes horas de inconformismo cerceado que suporta todas as semanas, mais uma jornada de busca por algo desconhecido que lhe revelasse as razões das coisas. Sabia que nada iria aprender. Mas cedeu sem resistência. Mais esta vez. A sua voz interior afundou-se para onde não podia ser ouvida. Ela já bastava.
Viva o fim-de-semana, que se passa tão a correr e com tantos projectos impossíveis de concretizar. A vontade que lhe animava até ao final da tarde de 6ª feira soçobrava às primeiras gotas de cerveja, lá se iam as ideias magníficas, mas, que se lixe, o que conta é a festa, mesmo que seja sempre a mesma bebida, no mesmo sítio, à mesma hora, com a mesma gente, a mesma merda de conversas trôpegas, as mesmas caras de frete e de alegria artificial, o que conta é a libertação. O que convém é ele estar consciente da derrocada da sua mente pelo seu próprio inconsciente, é ele saber que pode ser ele próprio a controlar a sua alienação e esta não ser ditada por mais ninguém. Ou isto ou o suicídio, que é bem mais rápido, mas que não dá a ilusão das pequenas vitórias morais. A alegria é uma vitória moral e ele quer torná-la maior que qualquer realidade inapelavelmente derrotada. Lute-se a destruição com a destruição.
“E quem me leva a casa?”, perguntou ele a cambalear, saído do bar, eram 4 da manhã, a mulher não ia gostar, achava ele, pela sua torpe cabeça. Ela estaria, sozinha ou talvez não, quem sabe?, provavelmente agarrada a concursos e telenovelas imbecilizantes na TV e sem nenhum sentido de zapping, nem do aparelho, nem da sua própria vida. Ela convertera-se num conjunto de rotinas sobrepostas em jeito de arranha-céus de dejá-vu’s. Era isto que ele pensava, pois na verdade desconhecia o que ela fazia ou pensava, era um mistério que não lhe interessava por lhe ser irrelevante. O amor já não existe, talvez nunca existisse algo mais que uma súbita paixão física, mas foi isto que ele escolheu, a certeza da imobilidade e o conforto da estabilidade, foram estes os votos que foram trocados, foi aquela a cerimónia protocolar do seu matrimónio, foram aqueles contraceptivos inúteis que tornaram os seus filhos uma realidade, e era tudo isto e muito mais que era necessário esquecer. Ela já conhece os contornos da relação, ela já nem sequer se importa, ela já não tem ambições maiores que esta, preserva apenas um extremo pulsar contemplativo e passivo que lhe preenche os dias e que lhe mantém a sanidade a níveis elevados, evitando-lhe chatices e choros maiores.
E ele também não quer chatices, não quer levar ninguém com ele para o abismo da sua existência, essa gente, apesar de tudo, não merece. Ele faz os possíveis para que percebam que ele é o capitão do seu barco e que será o último a sair do desastre onde se enfiou, queria que todos percebessem a tempo e saltassem borda fora da sua vida e então, no fundo do mar, iniciaria tudo de novo, um “format c:” ao seu disco já pouco rígido, um “reset” deliberado a todo o seu passado e presente, tudo em silêncio, tudo como se nada se passasse, tudo sem sinais de alerta que levantassem as irritantes vozes da consciência.
Era difícil entender. A caminho de casa, apanhando com o ar fresco da madrugada pela janela aberta do lado do pendura, ele focava pontos dispersos na cidade dos malditos, das criaturas negras e grotescas que se arrastavam nas bermas das estradas e nas portas dos bares nocturnos, tentando conter o rebuliço da sua cabeça e do seu estômago. “Não devias ter bebido tanto, pá, o que ela vai dizer?”, dizia-lhe o amigo, preocupado com os seus estofos. A cabeça dele pendia, os ouvidos dele estavam muito alertas, em cada semáforo os arranques das motorizadas aceleravam as suas células nervosas, o eco dos risos de miudinhas com o hímen por rasgar ribombava no seu cérebro e as gargalhadas dos rapazes imberbes espalhavam-se na sua nuca, velhos e crianças horríveis, diabólicos riscos contínuos e terríveis lombas soluçantes, entre imagens difusas e confusas de rostos desconhecidos e situações absurdas, labaredas crepitantes e ardores no organismo, casados numa amálgama cromática proto-psicadélica.
Deve ser esta a sensação do afogamento.
Deve ser assim que se começa de novo.
À saída duma rotunda, ele não conteve o vómito. E vomitou pela janela fora, até o carro se imobilizar na berma. Alguns carros passaram a alta velocidade, ninguém parou ou sequer reparou que estava ali alguém a cuja noite parecia ter acabado mal. “Estás bem?”, perguntou o amigo, levemente preocupado. Que excesso de retórica. Que pânico tão formal. Ele estava melhor que nunca.

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