sexta-feira, julho 20, 2007

Os Coração Universal

Este grupo musical fez furor. Eles eram os Coração Universal (CU). Como o nome indica, o colectivo era bastante romântico e apaixonado. Letras de amor e sobre desesperos da paixão combinavam com baladas melodiosas, ora calmas e ternas, ora épicas e emocionadas. Existia um coro composto por três mulatas brasileiras, um guitarrista virtuoso que surgia nalgumas faixas do grupo (“Adorável Helena, Como Tenho Pena” e “Comigo o Amor Vai Sempre À Frente”, por exemplo) e muito arranjo musical cuidado. O público-alvo era essencialmente feminino, entre os 12 e os 65 anos. Os CU também eram conhecidos pelo seu grande aprumo visual, sempre impecavelmente penteados, barbeados e vestidos, com camisas brancas de colarinhos largos e fatos pretos, sapatos brilhantes e sorriso estampado na cara, verdadeiros modelos metrossexuais que espoletavam gritinhos de desenfreada emoção na audiência e declarações arrebatantes de amor nas várias missivas enviadas pelas fãs. Toda a gente queria uma fotografia autografada por algum dos membros dos CU, havia enormes filas de mulheres em delírio histérico que aguardavam por uma oportunidade de visitar os camarins dos CU, não poupando esforços para atingir esse desiderato, entre desmaios, comoções e longas horas de espera coladas às barreiras de segurança. Não havia como esconder, os CU já possuíam uma legião de seguidoras maior que a do Tony Carreira, à qual sonegaram alguns elementos descontentes pelo sotaque afrancesado deste. Havia mesmo quem tivesse substituído o quadro da última ceia de Cristo da sua sala por um quadro dos CU em pose sorridente ao pôr-do-sol.

E quem eram os CU? Três jovens extremamente bem-parecidos: o Saul, o Feliciano e o Américo. Quisemos saber da boca deles como eles próprios se definiam.
Saul (S) – Olá, eu sou o Saul, tenho 24 anos e sou um eterno romântico. Sou muito tímido e melancólico. Não tenho namorada, espero ainda por alguém que preencha o grande espaço vazio do meu coração e com quem possa partilhar todo o carinho e afectividade que tenho para dar. Estes meus sonhos de amor inspiram-me a escrever na solidão do meu quarto virado para a praia. Sou eu quem escreve as letras do grupo, de que é exemplo o nosso recente êxito “Amor Às Postas”: “Amor, vem para junto de mim/ Amor, eu sei como tu gostas/ Não aguento tanto amor assim/ Eu quero o teu amor às postas”. Gosto de ler romances de amor e de oferecer rosas às mulheres, que são as minhas divas e pelas quais nutro um enorme afecto. Adoro-as a todas. Um beijinho para elas. Chuuuuac!
Feliciano (F) – Olá, eu sou o Feliciano, tenho 23 anos e sou de S. Mamede de Infesta. Para mim, os CU são tudo, é um grupo fabuloso de amigos que têm em comum o gosto pela música romântica e o facto de sermos eternos apaixonados. Fui eu que tive a ideia para o nome do grupo, pois julgo que o coração tem um poder do tamanho do mundo. O coração deveria comandar todas as nossas acções, deveríamos aceitar e saber viver livremente as nossas emoções. Sou um rapaz bem-disposto, sem namorada por enquanto, que gosta de conviver com os amigos e que preza muito os valores da amizade e da ternura. Adoro animais, especialmente os cães. No fundo, por serem muito amigos dos humanos, são fantásticos. A todas as nossas fãs, um GRAAAAAAAAANDE xi-coração. E lembrem-se: o amor muda o mundo.
Américo (A) – Eu sou o Américo, tenho 26 anos, sou o mais velho do grupo e moro no Bombarral, onde conheci o nosso manager, o Torcato, que me apresentou estes meus dois amigos. Era tudo o que procurava, estes rapazes são impecáveis e sentem o mesmo que eu: temos uma mensagem de paz e amor muito importante para transmitir. Nós assumimos os nossos sentimentos em palco, emocionamo-nos bastante com a recepção do público, julgo que ele sabe que o que nós cantamos é sincero, puro e muito bonito. Uma vida sem paixão não faz sentido, nós homenageamos as coisas boas que nos dá o coração e assim pretendemos continuar. Um grande beijinho para quem nos apoia e continuem sempre a sonhar e a amar.

O que os CU não sabiam era que a entrevista que eles pensavam estar em off estava na realidade em on. Registámos o diálogo subsequente.
S – Bem, o que vamos fazer agora?
A – Pá, vamos mas é mamar umas cervejolas, que ainda faltam umas 6 horas para o concerto.
F – Onde é que vai ser o concerto, afinal?
A – Hoje vai ser em Famalicão… ou em Barcelos… sei lá, é lá para o Norte. E depois ainda vamos autografar a me*** dos discos e dar umas flores às gajas, a me*** do costume…
F – Eh, pá, f***-se, essas gajas do Norte gritam como o car****… histéricas do car****… Vou mas é fazer um risco, que é para ver se aturo essa me***… São servidos?
A – Aaah! Tinhas aí branca e não dizias nada, ó pane****o? Faz aí um risco para mim também!
S – Este gajo anda a dar na branca sem nós sabermos! Se fosses para o car****!... Quando estás a ressacar, nós ajudamos-te; quando estás na boa, cagas na gente, não é?
F – Ó Saul, vai-te f***r!! Escreve mas é mais uma dessas letras de me*** que sabes fazer e não stresses!
S – Ai o car***o, ó Feliciano! Tens alguma coisa contra? Se não fossem as minhas letras, este grupo não ia a lado nenhum! Tu estás feito um agarrado do car***o e o Américo, se não estivesse nos CU, estava a treinar cães de luta lá na parvónia!
A – Parvónia o quê, ó car***o? Tens muita mania, ó morcão… vê lá se queres que largue o meu pittbull para te f***r esse cu de mouro… Tu fazes as letras mas és feio como a me***, nem com esse gel todo e com as duas plásticas que fizeste após a nossa dupla platina disfarças o teu aspecto de gnu… Sabes bem que nós é que somos gajos todos bons e que as gajas querem-nos é a nós… És bom sim, mas é a bater punhetas!
F – Ahahah!, está boa essa, está, ó Américo! Esse coninhas treme só de ver uma mamalhuda ao perto! Sniiiiiiiiiiiiiiiif!... F***-se, que esta branca é mêm’ do best… Ena, c’um car***o… F***-se!... Sniiiiiiiiiiiiiiiif!
S – Estás enganado, ó drogado! Já f**i mais gajas nos camarins do que tu! Mas buéréré mais!
F – Quem, tu? F***-se, é só pitas! Tu só papas gajas gordas com menos de 16 anos!
A – Ahahah! E daquelas lá de Trás-os-Montes, com aparelho e tudo… Ainda me lembro, em Viseu estava eu com uma loiraça toda boa, a escavacar aquele grelo forte e feio, ela a dizer “Amas-me, Américo?”, e eu “Amo-te pois, minha querida… o meu coração é todo teu”…
F – Eheheh, és fo***o, ó Américo… sempre com essas me***s!...
A – Sabes como é, tenho uma lábia do car****… bem, mas nessa altura estava mesmo cheio de tesão, a gaja era boa como tudo, uma gaja dessas só aparece de tempos a tempos, como naquele concerto lá em França… enfim, estava eu já quase a comer o cuzinho da gaja, a dizer que lhe amava como nunca tinha amado ninguém e que ela era o sol que iluminava a minha existência…
F – Essa do sol não falha… Já comi umas quantas gajonas assim com esses paleios de me***!... Sniiiiiiif!
A – …e estava o Saul a tentar engatar uma gorda com os dentes podres de 15 anos que estava lá com o poster para ele assinar! Eheheh! Não tens vergonha, ó Saul?
S – Vão todos mas é para o car***o! Eu vou falar com o Torcato e dizer-lhe que não vos aguento mais, vocês só têm me*** na cabeça! F***-se, odeio-vos!
A – Vai-te mas é f***r, tu precisas de nós! Nós é que temos o estilo todo. Embora aqui o Feliciano só convença as cotas raquíticas…
F – Ai o car****, ó Américo! O que é que estás para aí a dizer? Aquilo não são cotas, são mulheres com experiência… E estou a namorar agora com a Maria de Lourdes, que é uma velha toda boa…É um campeonato mais difícil, requer mais concentração… tu só comes put** fáceis!
A – Ahahah!, deixa-me rir! Só f***s é cotas cinquentonas e usadas! F***-se meu, enxerga-te lá bem ao espelho… Tens um trombil que mete medo, o que te vale é teres tido aulas de musculação…
S – Musculação… Esse gajo é só esteróides e anabolizantes… Drogado de me***…
F – Vão para o car***o, vocês os dois! F***-se, que são chatos como a me***! Também só espero que o Torcato me arranje outros gajos… e outra banda, que já enjoei destas me***s melosas de “amor”, “carinho”, “ternura”… F***-se, é só m***a, se eu cantasse o que me vai na alma era mais morte a essa canalha que anda para aí a roubar e que se f***m os políticos, isso é que é brutal! Aposto que continuava a f***r à grande e à francesa de qualquer das formas, bom como eu sou…
A – Olha, eu digo o mesmo. Eu é mais rap e hip-hop, ‘tão a ver a cena? Lutas na street, graffittis, a minha crew toda a apoiar… Iá, isso é que é… Agora estas me***s… Eu cago nesta me*** toda, quero é curtir a minha onda, ‘tão a ver. Vocês metem nojo. E eu nunca gostei de nenhuma gaja a sério… para mim é fo**-las o máximo que possa. Ehehehehe!
S – Vão todos para o car****! Montes de me*** que me saíram!
F – Tens algum problema, ó Saulzinho? Vê lá se queres que solte um dos meus cães para cima de ti… ficavas logo feito num monte de ossos…
A – Ouve lá, ó bacano, também não fales assim com ele, se há alguém aqui que lhe deve ir à tromba sou eu… Vê lá se te enfio uma biqueira larga 42 pelo teu cu acima e mando um balázio no focinho dos teus cães…

F – Olha-me este cromo, todo armado em bom… Espera lá que já te f***!...
Torcato – Meus, meus! Qual é a vossa?!? Esta m***a está a dar em directo na rádio! Vocês estão malucos?!? Estão a arruinar a minha e a vossa carreira! Atrasados mentais! Desliguem o microfone, car****!!!
S – Onde está essa me***?
F – Está atrás de ti, car****! Desliga já essa me***!
A – F***-se, se calhar ninguém ouv...

Mas houve muita gente que ouviu. Torcato, atormentado, lá admitiu publicamente que os CU não seriam assim tão genuinamente românticos quanto isso, o que delapidou por inteiro a sua base de fãs. As seguidoras sentiram-se ofendidas, traídas e humilhadas por terem visto os seus sentimentos manipulados. Quase nenhuma fã sobrou, a queda nos topes foi abrupta e brutal. Torcato tentou reinventar os CU, agora denominados Canibais Urbanos, com estilo entre o punk, o disco e o hip-hop, mas debalde. Os novos CU não granjearam grandes apoios fora dalguns bairros periféricos de Lisboa e do Porto e desmantelaram-se definitivamente após um concerto mal sucedido na Campanhã, que terminou com uma rusga policial, apreensão de droga, armas ilegais e vários documentos de identificação falsificados, dois mortos e catorze feridos, entre os quais Feliciano, mordido no tórax por um cão da sua própria matilha.
Hoje em dia, Torcato, refeito deste desastre, mantém-se como manager musical, promovendo novos êxitos como as Tau-Tau e Tó Ny. Saul é procurado pela polícia por assédio sexual a animais em vias de extinção e escreve para uma fanzine de extrema-direita. Feliciano luta diariamente para fugir à overdose enquanto entrega pizzas e organiza lutas de cães. Américo juntou-se a uma luta armada de resistência algures na América Latina, onde é cabecilha dum grupo rebelde constituído por crianças raptadas a orfanatos e que é responsável por massacres em plantações de cocaína. Nenhum deles voltou a ganhar um mísero disco de prata.

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