segunda-feira, julho 23, 2007

O Almoço

Eh pá, mais um almoço. Outra porcaria de almoço.
Não arranjas para aí uma outra forma de confraternização? Do género: darmos uma simples volta pelo jardim, ou pelo canteiro enfezado a que convencionámos designar por “jardim”, pois espaço verde com mais de 2 acácias ou pinheiros-mansos é já um “parque natural” nos dias que correm; ou passear pelas ruas da tua vila, que é tão pitoresca e onde a grande notícia é o suicídio de mais um toxicodependente asqueroso ou o falecimento de mais um idoso acamado e abandonado; ou visitarmos a casa um do outro, assim sempre podíamos estabelecer comparações e assegurar que a minha casa é sempre melhor que a tua, quer vista sob um prisma qualidade-preço, quer sob outro prisma qualquer; ou pura e simplesmente marcarmos um encontro na estação de comboios mais perto e comunicarmos unicamente durante o tempo de espera e enquanto nos apertamos como sardinhas na lata locomotora, se houver oportunidade para tal.
Agora, um almoço? Porque é que as grandes decisões se tomam sempre à mesa? Existirá outro veículo comunicacional que não o ajuntamento à mesa?
Estás-me a ver com cara de quem paga a conta? Tenho cara de quem financia almoços grátis?
Para começar, detesto as azeitonas. E, para finalizar, não gosto que cirandem à minha volta com apelos para comer a sobremesa, há fruta e doces muito bons, é uma pena não experimentar, mas tenho pena, não como. Pelo meio, o prato principal é que me cativa. Noto e desprezo as intenções comercialóides dos empregados de mesa, que colocam pão do dia anterior e couvettes hiper-inflacionadas para nos irmos “remediando” enquanto o prato do dia demora fastidiosos minutos a surgir esquentado à nossa frente. Mas com isto até convivo bem. O pior é quando o atraso na refeição é visto com regalo.
“Assim colocamos a conversa em dia”. É tudo o que se pretende, no final de contas. Por isso, o restaurante mais requisitado é aquele com o serviço mais lento. É o restaurante do convívio, verdadeiras casas-do-povo urbanas dos tempos modernos.
Mas quem disse que eu quero conversar? Para mim, almoço é para comer. Coro de vergonha por me exigirem uma resposta pronta ao negócio que me está a ser proposto e eu ali, de boca cheia, tentando mastigar a carne de vaca seca que se atulha na minha boca. Tenho de falar de boca cheia, seria extremamente indelicado pedir para aguardar uns breves segundos, os necessários a mastigar definitivamente, engolir e beber uma aguinha para desentupir o goto. Ninguém está virado para a minha dificuldade em deglutir, ou melhor, estão todos virados para mim à espera de uma reacção, eu de boca cheia, esforçando-me por articular som. E eu lá digo qualquer coisa, cuspindo um bocado de comida na direcção dum interlocutor. É a minha vingança. Para a próxima come e não fales. Não questiones. Não contes piadas. Não peças opiniões. Limita-te a comer.
Convenço-me que é impossível marcarem-me um almoço em que eu consiga apenas comer. O que a gente quer é falar. É coscuvilhar. É socializar à bruta. O meu conceito de almoço é demasiado tradicional. Deveras simplório. Para mim, almoço é para sentar e comer. Vá lá, admito que se veja televisão ou que se leiam jornais. Não me faz espécie que falem ao meu lado sobre a crise política ou sobre o golo em fora-de-jogo. Só peço que me deixem comer. Como se vivesse convosco durante anos a fio e o almoço fosse apenas mais um rotina insignificante, onde a obrigação da conversa fosse inexistente. Mas não – “vamos lá abrir o livro”, é o que se espera de mim, que só estou aqui pelos carapaus grelhados com molho à espanhola.
Pior que o almoço só o jantar. O jantar envolve convívio pela noite dentro. Especialmente em casas fumarentas e barulhentas, onde falar se torna impossível. Concluo que o interessante é estarmos juntos. Apenas. Só. Corpos físicos em proximidade. Primeiro, tiram-me o prazer da comida com conversa; depois, quando podia conversar, tiram-me a conversa com barulho e poluição. Percorre-me aquela estranha sensação de ter o relógio social acertado por outro fuso horário bem distinto do fuso local. O jantar para que me convidaram foi afinal um logro. Pensava eu que ia comer; não, ia jurar fidelidade a um grupo com uns bifes do lombo como pano de fundo. Pensava eu que ia dedicar-me a especialidades gastronómicas doutras latitudes; não, ia beber um sub-produto bastante alcoólico e assim preparar-me para a grande festa pós-jantar, retirando espaço gástrico às tais especialidades gastronómicas. Pois é, se não se come em condições, bebe-se à farta. E se há menos conversa, entorne-se ainda mais bebida nos copos, a conversa acabará por surgir, inevitavelmente.
Só me falta marcarem pequenos-almoços e ceias para me dizerem que se vão casar, ou que vão ter mais um filho, ou que mudaram de emprego, ou que têm uma rifa da escola da filha para venderem, ou, mais estranho que tudo isso, para quererem comer um croissant de fiambre ou uma sopinha de alho francês só porque sim, porque gostam de comer comigo à frente. Por favor.

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