terça-feira, julho 17, 2007

O Gordo e o Magro

- Estou cheio de fome.
- Come pão.
- Não posso. Tenho uma doença celíaca.
- O que é isso?
- Alergia ao glúten.
- E é muito grave?
- Significa que se eu comer pão fico de diarreia, é quase certo.
- Podes morrer?
- Num caso extremo…
- Então não comas pão.
- Não ia comer pão. Também não ia beber leite, pois sou intolerante à lactose.
- E podes morrer se beberes leite?
- Eventualmente…
- Então não bebas leite. Come fruta.
- Fruta não mata a fome.
- Então não? Come uma dúzia de laranjas.
- E depois apanho uma sobredose de vitamina C… e lá vêm os problemas intestinais.
- Come um bolinho de chocolate.
- Isso faz mal aos dentes. E, além do mais, tenho tendência para diabetes.
- Podes comer carne e peixe?
- Posso… mas não quero. Não como outros animais.
- Nem um arroz de marisco?
- Tenho a infelicidade de ser alérgico ao arroz. E marisco está-me vedado.
- És vegetariano?
- Sou mais que isso. Sou vegan.
- Ah, está bem. O que podes comer, então?
- Soja.
- E mais alguma coisa?
- Todos os vegetais não transgénicos. Isto é, praticamente nada. E saladas não matam a fome.
- E a soja não é transgénica?
- A que eu como, não.
- E porque é que não comes soja agora, que te está a dar a fome?
- Estou farto de soja.
- Quão farto?
- Mesmo farto. Fartíssimo. Tu sabes o que é ter de viver apenas com rebentos de soja, tartes de soja, leite de soja, farinheiras de soja, cozido de soja, soja à Brás, soja demolhada e ultracongelada, tiras de soja, rodízio de soja, aguardente de soja, empadão de soja, gelado de soja, pudim de soja… Eu vejo a minha lista de supermercado e é só soja, soja, soja, soja, peúgas, água mineral, azeite e soja, soja, soja e soja. Vou sair com os meus amigos e é uma entremeada grelhada para um, um hambúrguer para outro, uma pizza 4 estações para aqueloutro, “E para si, senhor?”, “Ah, para mim era um filete de soja”, “Lamento, mas não temos”, e à falta de um menu adequado, lá estou eu a comer bróculos e cabeças de nabo cozidas à pressa. Estou completamente saturado! Tenho fome, pôrra!
- E porque é que insistes em ser vegan? Achas que vale a pena o sacrifício? Julgas que aguentas tantas privações? És um fracote que reage mal a tudo… e o que não te provoca reacções é reprimido por ti, porque faz mal e tal… Olha, é bem feito estares a desvanecer, se não fosses tão picuinhas estavas na maior…
- Eu tenho princípios. Eu acredito nas minhas convicções. Não posso mudar: era sinal que tinha abandonado a luta pelos meus ideais. Era o meu fim ideológico. Era a derrota final. Era a minha morte enquanto Homem com honra.
- Está bem, está… Olha lá para ti: pesas menos de 50 quilos…
- Eu sei…
- Se não matas a fome depressa, depressa a fome mata-te a ti…
- Eu sei…
- Queres que eu te dê uma grande alegria psicológica? Não alimenta o teu aspecto tísico, mas pelo menos conforta-te o espírito.
- Dá-me lá…
- Farto-me de comer ovos, pão, açúcar, carne gordurosa e marisco; peixe também, mas só quando não há carne por perto. Raramente bebo leite, a não ser quando junto ao café que ingiro 5 vezes por dia. Tenho um hálito nauseabundo, devido ao álcool e ao tabaco, peso mais de 120 quilos, sou gordo e tenho os dentes podres. Arroto alarvemente em função das minhas complicações gástricas. A única verdura que costumo comer é o grelo da minha mulher. Embora sedentário e carregado de colesterol, sou feliz. Tens aqui o meu retrato. Espero que te sintas melhor.
- Eh, pá, sim senhor. Isso renova-me vontade de lutar. Não quero ser como tu, está mais que visto.
- Podias ser mais delicado… estou a tentar ajudar-te… o que é que está assim tão mal em mim, ó magricela?
- Tudo, pá. Todas as porcarias que ingeres, todos os teus hábitos pouco saudáveis, todo o desrespeito pelo ecossistema que te rodeia… e o sexo com a tua mulher deve ser um espectáculo mórbido… vocês os dois já nem cabem num elevador…
- Por acaso é… A gaja está gorda como tudo… Tem o cu tão adiposo que já tem de cagar numa banheira…
- E tu também…
- Deixa estar. Pelo menos, não morro à fome.
- Morres de enfarte.
- Não morremos todos? Pelo menos morro a fazer o que me dá na gana.
- E eu morro a lutar.
- Morrer a lutar? Pff… Acho que és um lírico inocente.
- Morrer a comer? Pff… E tu és um hedonista inconsequente.
- Somos tão parecidos, afinal…
- Fala por ti. Tu não tens objectivos nem valores sãos. Eu sim. A minha luta é o reflexo dum estado superior da mente.
- Pois eu acho que tu és “demente”. Qual luta? O que pretendes provar?
- Tudo. Se mudar-me a mim, poderei mudar o mundo. E tu só queres aproveitar-te das coisas boas do mundo. Tudo isso não é dado, constrói-se e preserva-se. Com esforço e dedicação.
- Que se lixe. Se ninguém se colocar à sombra das coisas boas da vida, de que vale a pena lutar por elas? Quem vai desfrutar de tanto “esforço e dedicação”?
- Que egoísmo…
- Que ingenuidade…
- Não vale a pena gastar mais forças… vou resignar-me à soja, por muito que me custe.
- Queres uma fatia de presunto de Chaves, bem salgadinha e saborosa? Enquanto comemos, contavas-me como está a ser a tua saga heróica rumo ao nirvana…
- Vai gozar com outro, ó gordo!

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