quarta-feira, julho 11, 2007

Conselhos Samaritanos

Jovem esclarecido:

Paga impostos. Paga até os impostos que não são teus. Tem a decência de apresentar tudo logo a 2 de Janeiro, para não haver atrasos. Reúne o teu agregado familiar e queima todos os recibos de despesas numa pira familiar, de forma a não delapidar a base tributável. Se a Direcção-Geral de Contribuições e Impostos se atrasar, um dia que seja, dirige-te à repartição do teu domicílio e exige que recebam um cheque da tua parte. Faz questão de deixar gorjeta à inefável e injustiçada funcionária pública que te olhará com incredulidade. Adquire produtos de luxo, feitos com material reciclado, claro, antecipa as compras que só pensavas fazer daqui a dez anos e declara-as a todas neste exercício fiscal. Inclui na tua declaração todos os brinquedos que compraste para os sobrinhos e não te esqueças de colocar um barco a motor, um apartamento de luxo na Foz e rendimentos exorbitantes de especulação bolsista, mesmo que não tenhas nada do descrito – e não te sintas constrangido, serão mentiras que ninguém irá contestar e serão mentiras exclusivamente para o bem público. Se tiveres oportunidade de te lamentar, afirma que apoias o fim da escandalosa taxa reduzida do IVA. Refere que o IRS devia ser, no mínimo, uns 40% e que o IRC devia desaparecer de vez para aumentar a nossa competitividade. Aplaude a criação de novas taxas, especialmente municipais, e argumenta a favor da dupla tributação. Se tiveres impostos a recuperar, esconde-te com vergonha da tua miserável condição e devolve o dinheiro aos cofres do Estado, que é onde ele faz falta: para estradas, hospitais, carrinhos de alta cilindrada e férias dos nossos grandes líderes.
Espera nas filas. Sempre em pé, se possível. Dá lugar aos velhos e mulheres que esperam como tu, sê cavalheiro em toda e qualquer situação e orgulha-te de ninguém ter reconhecido a tua amabilidade e de continuarem a olhar para ti como se fosses um facínora vulgar. Pára em todos os STOPs de qualquer estrada secundária e cumpre o limite de velocidade. Quando te insultarem ao volante, dá a outra face para seres cuspido ou agredido, desde que não percas o controlo da viatura. Jamais trates alguém por “tu”, que podem levar a mal a coloquialidade das tuas maneiras. Relembra-te que o professor, o polícia, o chefe e os médicos têm sempre razão e que tu és uma pessoa confusa, embora bem intencionada. E se não estiveres em nenhuma fila, alista-te no exército, faz-te voluntário de qualquer coisa, doa qualquer bem imóvel a uma qualquer associação de defesa dos direitos de alguma coisa, desenrasca-te como puderes, mas doa. Voluntariamente.
Não penses em trair a tua mulher. Deixa que ela o faça em primeiro lugar. Nem sequer discutas com ela, não tentes perceber o porquê, ela tem razão, sempre teve, não foi desta que a perdeu e não vale a pena tentares fazer o mesmo, porque ninguém estará interessado em ti e isso já não seria bem uma traição, seria mais um atestado de razão à traição dela. Procura ilações positivas pelo facto dela te ter traído com um gajo qualquer, como, por exemplo, o facto de possuíres mais tempo para aprender a cozinhar, sozinho que estás. Não cedas à tentação da pornografia da Internet, lembra-te que é tudo montagens e que a infelicidade das personagens na vida real é algo de aflitivo. Nem sequer te masturbes, pensa é numa forma de agilizares a maneira de despachar os calhamaços de papel que repousam na tua secretária lá no teu local de trabalho. Arbeit macht frei, o sexo implica perda de produção, desamarra-te dessa actividade animal que só atrasa o país. Não te esqueças que cada parto é lesivo ao Estado, ao fazê-lo gastar 30€ mensais em abonos de família. Pronto, poderás ver o João Kléber de vez em quando, se isso te consola.
Não favoreças os teus amigos. Pensa bem se eles já fizeram alguma coisa por ti. É bem provável que não, a não ser uma ocasional cervejola que te pagaram num passado remoto. E devias ter preferido um Sumol. Portanto, faz o teu trabalho das 8 às 8, sem horas extraordinárias e incluindo fins-de-semana, deixa os teus pseudo-amigos à espera e confia cegamente nos teus superiores hierárquicos, que certamente saberão reconhecer o mérito aos amigos deles, esses sim, amigos a valer e que já fizeram favores a valer. Se alguma vez tiveres oportunidade de colocar o teu amigo num excelente cargo, avisa as autoridades competentes e deixa que o partido escolha a pessoa indicada. Se o teu amigo insistir e te oferecer alguma gratificação, denuncia-o e tenta que essa gratificação seja entregue às autoridades competentes. Informa-te bem quem são as tais “autoridades competentes”, que é para não fazeres má figura e falares com quem já não é bem a “autoridade competente” em questão, mas sim uns porcos oportunistas chulos do Estado. Denuncia esses gajos também, se por um estúpido acaso souberes distingui-los.
Se fizeres tudo isto, estarás a dar um contributo cívico ao teu país. O país agradece e honrar-te-á condignamente para a posteridade, prometendo que colocará uma bandeira de Portugal na tua urna aquando do teu enterro. Em caso de cremação, obviamente, não haverá esta homenagem – e aqui garantimos que cumpriremos a promessa.

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